Minas Gerais

Entrevista

“Nossos filhos e filhas estão sendo ameaçados nas ruas, de graça”

Coordenadora do coletivo “Mães pela Diversidade” em Minas reflete sobre o momento atual e convida para evento

Brasil de Fato | Belo Horizonte (MG) |
Myriam Salum resolveu entrar para a militância com mais de 60 anos, seguindo o exemplo de seu filho
Myriam Salum resolveu entrar para a militância com mais de 60 anos, seguindo o exemplo de seu filho - Foto: Eloá Oliveira

Elas são diversas como seus filhos. Há mães e pais de várias classes sociais, que moram em diferentes bairros e aprenderam com o amor pelos filhos e filhas LGBTs a importância de lutar por um Brasil sem preconceitos. Há mais de cinco anos a ONG “Mães pela Diversidade” atua em vários estados brasileiros participando de atos públicos e fazendo pressão em assembleias legislativas e órgãos internacionais. Além de trocarem muitas ideias, se ajudarem e se divertirem. “Porque dá muito prazer também”, garante Myriam Salum, uma descendente de árabe autodidata que resolveu entrar para a militância com mais de 60 anos, seguindo o exemplo de seu filho.

Ela coordena o coletivo em Minas Gerais e está na organização de um evento na sexta-feira (26), chamado “Café com amor”, com a ideia de reunir LGBTs, mães, pais e quem quiser para um momento de partilha de beijos, abraços e esperança. “Nossa proposta é bem diferente desse discurso de ódio que está aí. É de um país colorido, plural, que recebe todas as pessoas”, convida. Confira mais detalhes na entrevista.

Brasil de Fato - Como foi seu processo de virar uma mãe pela diversidade?

Myriam Salum - Na verdade, eu não tinha problema quanto a sexualidade do meu filho gay. Para mim, era uma coisa muito tranquila. Fui procurar por sugestão do meu filho o coletivo em outros estados, porque ele disse que eu poderia ajudar alguém. Achei que eu seria mais uma mãe participando, mas como não havia ainda o coletivo em Minas, acabei indo para a coordenação, para ajudar a criar. Como meu filho é militante - da frente autônoma LGBT - eu o chamei e pedi ajuda. E aí comecei a frequentar o coletivo deles, a conhecer a comunidade LGBT de BH, que até então não conhecia. Só conhecia os amigos do meu filho e alguns filhos de amigas. No final de maio do ano passado, chamei algumas mães para entrarem no coletivo.

A primeira vez que eu saí da bolha foi quando vi que muita gente tratava os gays de forma diferente. Eu não tinha muito essa ideia, eu não achava que as pessoas eram tão desumanizadas. Fomos para uma atividade na Câmara de Vereadores, em BH. Havia uns 40 LGBT, poucas mães e uma quantidade enorme de evangélicos, com cartazes em defesa da família, com um discurso de ódio. O ódio era direcionado aos filhos da gente. Como se eles não tivessem pais, não tivessem mães, como se fossem promíscuos. Isso foi chocante pra mim. Saí de lá com sangue nos olhos. 

Aí eu trabalhei pra caramba. Fui para a internet, redes sociais, fui com tudo. Nunca achei que eu fosse militar tanto. Mas aí eu entendi que para meu filho estar seguro, o filho da outra tem que estar seguro. O filho daquela mãe que não aceita o filho tem que estar seguro. Se ela não se preocupa, vou me preocupar. Aí começou aquela bandeira de somos mães de todas. Às vezes ando na rua e ouço alguém me chamando: "ô mãe”. É muito engraçado e muito prazeroso. Para mim, foi extremamente prazeroso descobrir que, aos 62 anos, eu poderia fazer alguma coisa assim. Acabou virando uma bandeira de vida, um objetivo de vida.

Agora já abrimos o coletivo em muitas cidades de Minas. Temos grupos formados em São Joao Del Rei, Juiz de Fora, Muriaé... e estamos cheias de sementes. Mães em várias cidades esperando para receber outras mães. A gente vai fazendo uma rede.

Como funciona o grupo?

Geralmente começa no Facebook. Depois, vamos criando grupos de WhatsApp. De lá elas marcam conversas, encontros. Quando chega mãe nova elas se ajudam, acolhem, informam. E claro que entram pais também.  E olha, tem muitos pais que aceitam os filhos, as filhas, primeiro que as mães. Na verdade, acabamos com o preconceito é com informação. A pessoa tem que entender quem é seu filho ou sua filha. Cada um tem seu caminho nessa vida. É muito importante esse respeito pelo caminho do outro, respeitar quem o outro é. Ninguém escolheu quem eu ia amar. Eu escolhi. Por que meu filho não vai ter essa escolha? A palavra de ordem aqui é casa é amor e respeito. É preciso escuta do outro. Respeitar, se abrir para o outro. Meu filho me ensinou muita coisa. Mas a principal foi ser uma pessoa melhor. 

O Brasil é um dos países que mais mata população LGBT no mundo. Minas foi o segundo estado mais violento em 2017. E com essa apologia à homofobia recente, a violência está aumentando. Como você enxerga esse momento? 

Falar que o Brasil não é LGBTfóbico é uma mentira. Mesmo com as subnotificações, dá pra saber que é um dos países que mais mata no mundo. Com os discursos de ódio isso tem aumentado. Falar coisas como "quem é gay é por falta de coro" é coisa de quem precisou de coro para aprender a ser gente. Porque o que vejo é gente brincando de soldadinho de chumbo... Como se não estivesse mexendo com grande parte da população. E os LGBT negros, então, são os mais atacados. É privilégio ser branco no país, mesmo os negros sendo maioria. Não dá pra entender. O discurso de ódio que estamos ouvindo nesses últimos meses é de assustar. Nossos filhos e filhas estão sendo ameaçados nas ruas, de graça. A violência foi incentivada de uma forma quase nazista. Fizeram uma suástica no muro do Estadual Central [em BH] com um escrito "morte aos gays". Ainda bem que a juventude também é muito criativa e pintou por cima com mensagens de amor.

Seja quem for que ganhar ou perder as eleições, os nossos filhos já perderam. Porque eles estão com medo nas ruas. Muitos estão vendo os pais dizendo que vão votar nessa pessoa [Jair Bolsonaro, do PSL] e eles estão se revelando aos pais: você não pode votar nele porque eu sou gay. O que está acontecendo nesse país é surreal. O patriotismo dessas pessoas só abriga uma parcela da população. Ficam de fora os índios, os gays, as lésbicas, as trans, as bissexuais... O que vão fazer, vão afogar essas pessoas no mar? O Brasil não é delas? Eu estou chocada. 

Você acha que há semelhanças entre esse momento e a ditadura militar?

Nós vivemos anos de escuridão. Vocês leram nos livros, nós vivemos uma ditadura. Vivemos um golpe militar. E agora usam o mesmo artifício, as mesmas justificativas, um medo de comunismo, o mesmo discurso contra a corrupção. Como as pessoas não veem isso? Parece uma lavagem cerebral. Nossa democracia é muito jovem, gente. Temos que aprender muito ainda. Aprender a votar. Os negros têm que votar em negros, os LGBT em LGBT. Aumentar a representatividade. Precisamos é de mais tempo para a democracia. O tempo de uma ditadura amordaça as pessoas, silencia as pessoas, elas não têm condições de pensar, de se expressar. Vamos chamar isso de escuridão. Como disse o Martin Luther King, nós precisamos expulsar a escuridão com luz, não com mais escuridão. Precisamos corrigir os problemas. Mas não é com arma, não é com palmada. é com conhecimento, é com preparo. Esse menino que brinca de soldadinho de chumbo não tem preparo, não tem propostas. Ele nem debate. 

Na sua opinião por que algumas pessoas têm tanto medo, tanta homofobia? Por que tanto medo do tal "kit gay", que nunca existiu?

Primeiro que esse nome está errado, foi criado pela bancada evangélica fundamentalista. Pegou porque coisa ruim sempre pega. Porque não levaram ao entendimento da população qual era a ideia: que era de um Brasil sem homofobia. Fizeram disso um ardil. Porque família é onde tem respeito. Minha família, com meu filho gay, é muito mais família do que outras que têm aquele titio que assedia sexualmente a sobrinha, o marido que arruma amante por aí... Outra coisa: eles estão tentando vender uma ideia de que a sexualidade das pessoas é uma coisa que pode ser ensinada. Eu jamais ensinei meu filho a ser gay. Não é uma coisa que é ensinada. Meu filho nasceu gay. Morro de dó de uma porção de gente que casa com alguém de outro sexo só porque papai e mamãe não aceitariam. Como assim, gente? Está mais do que na hora de as pessoas começarem a respeitar, a começar o respeito dentro de casa.

Quando a gente fala em LGBTfobia estamos falando de um medo, de um asco do que não se conhece. Por isso que informação é tão fundamental. Especialmente quando se trata de pessoas trans, mas não só. Gente, passou da hora de termos um país sem homofobia, sem essa violência.

Há LGBTs de todas as classes sociais. Como esse discurso de ódio se articula com um processo de retirada de direitos?

Estão todos muito assustados, vejo isso. Casais homoafetivos com filhos têm tanto medo, até do que podem fazer com suas crianças nas ruas. Mas te digo uma coisa: para a periferia, vai ser dez mil vezes pior.  No coletivo nosso, eu brinco que mãe não tem cor, não tem religião, partido político. Temos o mesmo amor. O amor da mãe negra é o mesmo amor meu. Se machucar o filho dela, ela vai chorar o mesmo tanto que vou chorar o meu. Quando dizem que o país é de todos, eu penso: de todos quem, se estão jogando a metade fora? A bandeira tem que cobrir nós todos, temos que ter os mesmos direitos. 

O que é essa atividade "Café com amor" que o coletivo está chamando para o dia 26?

Para você ter uma ideia, meu celular fica 24h ligado e tenho recebido muitas chamadas. Muitas pessoas LGBT foram ameaçadas na rua. Expulsas de casa pelos pais. Aí chamei as mães e disse: vamos fazer um lanche? Um lanche de abraço, de amor, para levar afeto para essa meninada? Vamos abraçar os filhos todos? Aí todo mundo disse: vamos! Aí vamos fazer esse lanche coletivo, dar beijo, abraço, falar de esperança. Que o Brasil na segunda-feira possa nascer com céu azul, para nós todos. 

Eu queria muito dizer para os pais e mães que colocaram os filhos nas ruas: puxa essa meninada de volta pra casa, olha para essas crianças e lembra do dia que elas nasceram. Não é possível que o amor acaba assim. O lar é o melhor abrigo. O aconchego e o colo de uma mãe é o melhor lugar que um filho tem para se sentir acolhido e seguro. E outra coisa: esse pais e mães podem terminar sozinhos. Porque muitas vezes quem cuida dos pais idosos são as pessoas LGBT. Eles vão se arrepender muito depois. Porque eles podem tirar direitos dos nossos filhos, dos nossos netos e bisnetos. Mas se elas não quiserem, o nosso colo está lá, para todas as pessoas. E estamos indo com uma carga de amor muito grande. Nossa proposta é de um país colorido, plural, que recebe todas as pessoas.

Serviço

O “Café com Amor” será na sexta (26), às 19h, no Centro de Referência da Juventude (CRJ), que fica na rua Guaicurus, 50. Mais informações aqui.

Edição: Elis Almeida