Russofilia e ódio ao Ocidente

Sobre a Ucrânia já muito se disse e dirá, porque o que está a acontecer marca o início de uma nova era.

Mas, perante uma invasão militar pura e dura, tendo como objetivo imperial a conquista de território, uma das coisas que mais me interpela é a quantidade de pessoas que recusam ver o que as evidências mostram, e debitam, sem mastigar e sem hesitar, a litania da propaganda russa, culpando o Ocidente, os EUA, a NATO, enfim, a sua própria pertença civilizacional.

E vindos de vários “ismos” cujos extremos se tocam, entoam os mesmos slogans e brandem os mesmos “argumentos”, enxertados em transtornos paranoides e conspícuas teorias da conspiração, cujo único traço comum é o ódio ao Ocidente (especialmente aos EUA) e à democracia liberal.

Há anos, Jean François Revel escreveu “A obsessão antiamericana”, sugerindo que esse transtorno é um eclipse da razão e se auto-justifica na visão dos EUA como um poder imperial maligno, buscando raízes, na maior parte dos casos, num ódio visceral que não só não necessita de factos para se afirmar, como os relativiza, recusa ou reescreve, arbitrariamente.

Quando estas pessoas se manifestam, protestam, e tomam partido, mesmo nas circunstâncias óbvias do caso presente (e que é, linearmente, que a Rússia invadiu a Ucrânia), os seus ditirambos são, no mínimo, sinuosos, culpando invariavelmente a vítima, os amigos da vítima, os conhecidos da vítima, desde que, de forma directa, indirecta, ou até encapotada, sejam actores ligados ao Ocidente. Os seus argumentos, mesmo quando mais envergonhados, contorcem-se em frases cheias de “mas”, de “antecedentes”, de factos laterais, de infinitas tolerâncias, de exaustivas “contextualizações”, e a inevitável inversão da culpa. No limite do absurdo, no caso presente, chega-se a culpar a NATO pela invasão da Ucrânia pela Rússia.

Isto não é novo. A aversão à democracia liberal já vem de antes da 2ª Guerra Mundial. Basta recordar, por exemplo, que o inimigo comum do nacional-socialismo, do fascismo e do comunismo, era exactamente esse.

O Pacto Molotov-Ribbentrop não foi uma anomalia, mas um acordo  natural, só quebrado mais tarde, quando a Alemanha Nazi achou que o  inimigo comum estava derrotado.

No pós-guerra, foi a esquerda que se apoderou do tema e fez dele o verdadeiro móbil da sua ideologia.

Em 1944, alguns dias depois de milhares de americanos terem morrido que nem tordos nas praias da Normandia, o fundador do Le Monde escrevia que os americanos eram um perigo para a França, muito maior do que a Alemanha nazi ou a URSS, porque não sentiam a necessidade de se libertar do capitalismo.

A New Left, surgida na América, tinha como textos fundamentais as obras politicas de Noam Chomsky, que eram todas versões do mesmo tema simples: a América é má, o Ocidente é mau, o capitalismo é mau!

Não, não é por causa do Bush, ou do Trump, ou do Biden, ou do Iraque, ou da NATO, ou de qualquer outro epifenómeno da espuma do tempo.

É por causa da democracia!

E é também o fascínio pelos “grandes líderes”, pelos “pais protetores e castigadores”, pelos gajos que “têm mão nisto”…

Ou seja, o anti-ocidentalismo é uma “ideologia” que recolhe os mais diversos ódios à nossa civilização, vista como o repositório de todos os males do mundo e a materialização do capitalismo, liberalismo, democracia “burguesa”, etc.

É um ódio a si mesmo. Mas o indivíduo, frustrado e incapaz de se castigar, transfere-o para o grupo a que pertence, redesenhado como uma caricatura da realidade que, em grande medida, espelha o modo como o transtornado se vê a si mesmo.

No momento que passa, a vozearia pró-Putin emana de todas estas gargantas anti-democracia liberal e parece soar no mesmo tom vagamente alucinado, desde as trincheiras do PCP às dos grupos  associados a neonazis e fascistas. Porém, um ouvido mais atento consegue distinguir diferentes tipologias:

1. A esquerda pré-diluviana

Estes são os órfãos ideológicos de Enver Hoxa, Pol Pot, Mao Tsé Tung, Marx, Lenine, Estaline, e seus derivados coreanos, cubanos, venezuelanos, portugueses, etc. Em Portugal, tendem a agrupar-se em volta da reserva jurássica do PCP.

Neste caso da invasão, não é que gostem do Putin, esse “capitalista”, como grazinou o Avô Jerónimo, mas o Putin é russo, era do KGB e da URSS, e o Sol do Mundo era lá para os lados de Estalinegrado, foi naquelas longitudes que eles foram formatados a esperar o “Homem Novo”, enfim, faz parte do seu sistema operativo.

A sua secreta motivação é o ódio visceral ao sistema capitalista que a América (o seu Belzebu ontológico) simboliza, embora usem tecnologias americanas, vejam filmes americanos, e vistam jeans americanos. Deserdados de causas, só têm anti-causas. Foram condicionados a salivar perante certos estímulos e sempre que se lhes depara um leve odor a América, desencadeiam-se reflexivamente em fúrias e verborreias, justificações e contextualizações.

É desta cepa que frutificam alguns dos “especialistas” militares e civis que, por estes dias, têm invadido as televisões nacionais, cooptados pelos “jornalistas” da mesma casta vinhateira.

Os pré-diluvianos assumem, urbi et orbi, a defesa intransigente da “operação militar especial”, repetindo, ponto por ponto, sem se rir, os slogans da propaganda do Kremlin e basta abrirem a boca para fazerem jus ao dito popular de que “pelo fruto se conhece a árvore”.

2. A esquerda woke

Trata-se de uma certa fauna urbana que adora visibilidade, se acha mais esclarecida que os outros e, de certo modo, naturalmente predestinada para guiar, a bem ou a mal, as massas ígnaras no caminho da superior iluminação que acredita possuir. Vem das franjas do trostkismo, da New Left, do lenininismo, do maoísmo e de outros ismos do mesmo caixote. Não tem qualquer sentido de humor, mas sim a inabalável convicção de que tudo o que acontece, ou deixa de acontecer, deriva da intrínseca maldade do Ocidente, especialmente da América e, mais recentemente, do conceito que engloba tudo isso: o heteropatriarcado branco.

Cultiva o estilo “intelectual de esquerda” e “artista de vanguarda” e arroga-se uma inexplicável superioridade moral e intelectual constantemente auto-reforçada frente ao espelho de Narciso.

Esta esquerda, por cá acantonada no BE, certas franjas do PS e seitas equivalentes, joga no cravo e na ferradura. Às segundas, quartas e sextas, condena Putin, o fascista, em frases que incluem sempre um “mas”, a que se seguem exaustivas condenações à NATO e delirantes elucubrações cómico-estratégicas. Às terças, quintas e sábados, condena apenas a NATO e esquece-se de Putin. E ao Domingo muda de assunto e dedica-se à ganza, aos pronomes e às manifestações para salvar o planeta e isso…

A variante americana desta esquerda está numa situação incómoda porque tudo lhe puxa para se juntar aos pré-diluvianos e condenar os EUA, esse inferno do heteropatriarcado branco, racista e transfóbico. Todavia, infelizmente, quem está no poder é uma Administração que bebe na sua receita ideológica, pelo que passa a vida a resmungar baixinho coisas parecidas com a variante portuguesa e a desejar secretamente que ainda estivesse o Trump no poder, para poder desbocar à vontade.

3. A direita transtornada

Como compagnons de route, estas esquerdas, têm agora a chamada extrema-direita, taxonomia engraçada usada para designar os saudosistas do socialismo do tipo nacional, e do fascismo chocado no PS italiano, reeditando os velhos companheirismos Molotov-Ribenttrop.

Estes espécimes, muito dados à paranóia e a imaginativas teorias da conspiração, têm uma paixão genuína pelo Putin, e por aquele seu aspecto garboso, macho e desempenado, de tronco nu, em cima de um cavalo, em pose conquistadora. Por qualquer curto-circuito nas redes neuronais, acreditam que o novo Czar é o campeão da luta contra as perversões da democracia, o defensor da religião e da moral, o novo Messias que há-de vir, envolto nos fumos do vodka.

Trata-se, pois, de amor. E neste conflito tudo para eles é simples e maniqueísta: De um lado: a Rússia, o Bem, a Virtude, a Força, e o tronco nu do bem-amado. Do outro lado: a decadência, a democracia, o wokeismo, a Ucrânia dos drogados e o maldito Zelensky que é judeu e nazi ao mesmo tempo, não se sabe bem como… Para esta direita transtornada, qualquer facto que lhe belisque a cartilha, é pura e simplesmente descartado no transe do amor ao líder.

4. Os “idiotas úteis.”

São muitos e variados.

 Berram alto, como todos os seus congéneres. São tão idiotas como eles e escoiceiam furiosamente na direcção que lhes é indicada, embora só consigam olhar para o dedo e não para o alvo. Não gostam muito de pensar. Decoraram  alguns slogans naïves e, armados de todas as certezas, sentem-se aptos a anunciar ao mundo a profundidade da sua lapidar ignorância.

Os idiotas úteis estão sempre do lado retórico da paz, são a favor dos “direitos humanos” e das andorinhas, acham que a relva é sempre mais fresca no pasto alheio. De um modo geral, preferem não ocupar o seu cérebro com questões muito complicadas. Encontram-se muitos nas redes sociais, no meio artístico e nos concursos de misses.  São volúveis e podem mudar de foco a cada minuto, ao sabor do vento que sopre mais forte. O Mário Machado, por exemplo, acredita piamente na propaganda do Kremlin e vai, ao que consta, para a Ucrânia, lutar pelos “nazis”.

P.S. Há certamente mais variantes e subvariantes mas a tese básica de todas elas é simples: qualquer que seja a situação concreta da Ucrânia, se a Rússia quer algo diferente da América ou do Ocidente, então a Rússia tem razão e pode fazer o que bem entender. A culpa é do Ocidente e pronto, não há “mas” nem meio “mas”…

Para acabar, o facto inescapável que convém lembrar repetidamente, para manter a sanidade mental geral:

A Rússia invadiu a Ucrânia para se apoderar de território!

A Rússia invadiu a Ucrânia para se apoderar de território!

A Rússia invadiu a Ucrânia para se apoderar de território!


José do Carmo
Editor de Defesa do Inconveniente

* O autor usa a norma ortográfica anterior.

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