SERVIDORES PÚBLICOS PRECISAM SE PREPARAR PARA OS ‘CISNES NEGROS

Cris Ferri
6 min readNov 9, 2020

Vejo com muito pesar a forma como alguns colegas servidores públicos AINDA ‘entendem’ o mundo: estável e acomodada. Estou na área pública desde 1993. Peguei certa era de ouro do serviço público, quando as condições de trabalho, benefícios e deveres permaneceram estáveis, com poucas mudanças. Isso foi para bem e para mal também do servidor.

Algumas reformas, da previdência principalmente, vieram, mas nada que afetasse tanto aquele horizonte estável que compreendia, por exemplo, a tão sonhada aposentadoria com proventos integrais em algum lugar do futuro. Só que não. A última reforma da previdência, de 2019, realmente afetou a integralidade, além de outros princípios.

Depois de 25 anos contribuindo, decidi sair do Regime Único de Previdência. Cheguei à conclusão que, no meu caso, era melhor parar de depositar meu dinheiro num sistema sobre o qual perdi a confiança no recebimento potencial da aposentadoria integral no futuro. Daí optei por eu mesmo gerir o destino das minhas contribuições à previdência, daqui para frente pelo menos.

Autor: Holger Detje

Agora está em curso reforma administrativa que pode trazer algumas mudanças substanciais, como a entrada de novos colegas servidores que não vão adquirir estabilidade e avaliação de desempenho para todo mundo. Há aspectos positivos e negativos nisso. Mas não é o seu teor que quero discutir.

Em suma, o mundo mudou muito desde os anos 2000 e vejo que a forma de pensar do servidor público, em média, continua aquela mesma que tínhamos na década de 90 e começo dos anos 2000. Me desculpem, colegas, mas não dá mais para pensar assim. E neste artigo explico porquê.

O mundo de hoje está cercado por volatilidades: mudanças estranhas no clima, desconfiança acentuada na política, insegurança quanto ao emprego e à criminalidade nas ruas, entre outras circunstâncias.

A economia mostra sinais de instabilidade crescente. Pais não sabem como será o futuro profissional dos filhos. Estão inundados de incertezas quanto à educação das crianças. Crises sistêmicas volta e meia pipocam.

A crise do coronavírus, por exemplo, está sendo episódio fora da curva, um grande “cisne negro”, como cita Nassim Taleb no seu livro “A Lógica do Cisne Negro”. Cisne negro é a metáfora que Taleb usa para definir aqueles acontecimentos imprevisíveis que balançam as estruturas da nossa sociedade, já que são os cisnes negros mais raros em meio à abundância de cisnes brancos, bem mais frequentes.

Segundo ele, a gente não pode prever quando os eventos tipo cisnes negros ocorrem, mas pode se preparar minimamente para eles, seja para o bem, seja para o mal. E é disso que precisamos falar quando se trata de mudanças no serviço público. Cisnes negros estão vindo e vão afetar a área pública de tempos em tempos.

Outra ideia importante para entendermos nossa era é a da pós-normalidade de Zuadin Sardar. A relativa estabilidade que tínhamos nas décadas passadas agora foi substituída pela instabilidade constante, com momentos de aceleração dessas instabilidades. Segundo Sardar, o mundo de hoje é tomado pelos três ‘C’s: complexidade, caos e contradições.

Autor: Alexas

Complexidade tem a ver com o fato de que nada mais é simples. Não é simples consertar a economia, melhorar o meio ambiente, resolver os problemas sociais, reduzir a criminalidade, prover a população de boa educação e garantir condições mínimas de saúde. É verdade que essas questões nunca foram simples de serem resolvidas, mas a complexidade atual é bem maior e isso já é um complicador em si.

Na verdade, a maioria dos nossos problemas acontece com influência de interdependências globais. Economia afeta o meio ambiente que afeta a vida das pessoas, cujas condições precárias podem propiciar o surgimento e proliferação de epidemias que podem rápida e exponencialmente se alastrar pelo mundo afora devido a múltiplas interconexões de cadeias de transporte e logística.

Quando várias mudanças em diversas áreas acontecem ao mesmo tempo, é difícil entender e lidar com tal complexidade. São muitas variáveis interconectadas que geram efeitos exponenciais. Não conseguimos entender essa nova dinâmica. Nossos processos tradicionais de previsão e controle simplesmente não funcionam mais.

O caos sempre existiu na vida humana, mas agora ele adquire intensidade nunca antes vista. Estamos todos muito conectados, por meio de um processo de comunicação diversificada e incessante, e realmente não se sabe exatamente se tal situação melhora ou piora a sensação de desordem geral.

Não apenas na comunicação, mas tudo funciona basicamente em rede, tais como as cadeias de logísticas, mercado financeiro e sistemas de transporte. Assim, quando determinado ponto da rede fica bloqueado, ou tem problema, o impacto pode ser tremendo em toda a cadeia.

Fonte: Comfreak

Desse modo, pequenas mudanças ou alterações podem repercutir intensamente em todo o sistema. Segundo Sardar, quanto mais flui a comunicação e se consolida a organização em rede, mais chances teremos do surgimento de ‘pânicos auto-organizados’. Por exemplo, revoluções populares podem pipocar rapidamente e ganhar grandes dimensões.

Vale lembrar que o atentado de 11 de setembro nos EUA, realizado por grupo pequeno de terroristas, foi capaz de gerar efeitos diversos em todo o mundo: permitiu a ascendência de uma ideologia neoconservadora, mudou o curso histórico de países como Iraque, Afeganistão e Paquistão, redefiniu a noção de segurança nacional, revelou os limites e ambições do poder americano e galvanizou protestos e dissensos por meio mundo.

Por último, o mundo vive também a contradição como processo intrínseco da evolução cada vez mais rápida da sociedade. Em suma, toda ação gera reação e muitas ações sendo realizadas ao mesmo tempo geram uma série de reações em cadeia. Sardar ressalta como o nosso mundo contraditório de hoje implica um amontoado de efeitos positivos e negativos em várias áreas.

Também é notável não apenas que a sociedade mude, pois sempre mudou, mas agora muda de forma mais acelerada e cuja aceleração cresce exponencialmente. A famosa Lei de Moore, criada nos anos 50, preconizava que a cada dois anos a velocidade e a performance da computação iriam aumentar na proporção da diminuição do seu volume e preço.

Depois, a Lei de Moore foi modificada diversas vezes, pois essa aceleração tem aumentado acentuadamente no Séc. XXI. Ou seja, em poucos meses, os níveis de performance aumentam, e com a nanotecnologia e a computação molecular a caminho, esse processo vai se intensificar mais ainda.

Em poucas palavras, vivemos tempos de mudanças exponenciais. O problema é que muitas pessoas se adaptam geometricamente, outras, aritmeticamente, e a grande maioria sem diagnóstico não está aí para essas mudanças…

Uma das grandes vantagens de vivermos num mundo cheio de contradições é que nos força a ampliar nossa visão para sua complexidade. Simplificar nosso entendimento como fuga das dificuldades de tentar entender um mundo complexo, caótico e contraditório não vai resolver nossos problemas. Pelo contrário, vamos ficar ainda mais perdidos.

Por isso, não tenho dúvidas de que outros cisnes negros estarão a caminho nos próximos anos, já que temos alto grau de volatilidade e intensidade no nosso mundo. E esses cisnes afetarão cada vez mais governos, suas estruturas e servidores, orgânica e ideologicamente.

Não dá mais para pensar e agir da forma como fazíamos. Por isso resolvi fazer essa série de artigos ‘Por que o serviço público nunca mais será o mesmo’. Nos próximos textos da série, vamos explorar os outros aspectos que atingem o serviço público como uma bomba. Leia o segundo artigo AQUI.

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Cris Ferri

Gestor e professor de inovação na área pública, curioso incansável, eterno inquieto, apreciador da boa cerveja e motorista de filhos.