Fábrica de vinil de São Paulo se reinventa durante pandemia

Vinil Brasil anuncia lançamentos no charmoso formato 10 polegadas e se torna um selo em meio à revalorização do LP em tempos de companhias saudáveis de quarentena

PUBLICIDADE

Foto do author Julio Maria
Por Julio Maria
Atualização:

Duas máquinas pesadas que funcionavam sabe-se lá onde e de que forma chegaram a um ferro-velho de São Paulo há seis anos para um descanso merecido, aposentadas por tempo de serviço e dever cumprido. Elas mereciam. Prensando discos desde o meio dos anos 50, e só se suas prensas falassem seria possível saber quais vozes ganharam vida entre aqueles abraços quentes de algumas toneladas, as duas Hamilton norte-americanas com projeto de engenharia inglesa fabricadas entre 1953 e 1954 estavam ali, à espera de um comprador que reaproveitasse suas peças em alguma outra função, até que o destino as chamou de volta e tudo começou outra vez.

Michel Nath em sua fábrica de vinis, emSão Paulo Foto: Daniel Teixeira/Estadão

PUBLICIDADE

Michel Nath era DJ e músico quando soube das Hamilton e as levou do ferro-velho para sua casa, na Barra Funda. Não sabia bem como fazê-las reviver, mas já tinha um projeto em mente. Seis anos depois, dois de aprendizagem e quatro de produção, elas já prensaram 270 álbuns de artistas diferentes, o que soma uma entrega de 200 mil unidades no mercado. Mesmo em período de retração econômica com a pandemia, o que o obrigou a enxugar a equipe, a fábrica de vinis, batizada Vinil Brasil, se movimenta em 33 rotações com picos de 45. Por um efeito colateral, a pandemia obrigou lojas físicas a fechar mas aumentou, muitos casos em 100%, a venda de discos online. Ou seja, dentre os hábitos indestrutíveis, a audição de um LP, algo que nem a Segunda Guerra eliminou, foi até aquecida durante a quarentena. E as prensas de Michel, agora, anunciam novidades.

Além de fábrica, a marca passa a atuar também como um selo a partir deste mês, sendo seu primeiro lançamento o mais novo trabalho da Banda Black Rio, O Som das Américas, lançado digitalmente em 2019. O grupo é a autoridade máxima em funk, soul e samba-funk no País. Ainda em 12 polegadas, o tamanho de um LP normal, será lançado o álbum duplo da Nomade Orquestra, Vox Machina. A partir daí, as novidades estão também no tamanho. Pela primeira vez, o formato 10 polegadas será produzido por aqui.

Fábrica Vinil Brasil, noBom Retiro Foto: DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO

Trata-se de um disco intermediário entre o 12 polegadas, o LP, e o compacto, o disquinho, de 7 polegadas. O EP, como pode ser chamado, ou Extended Play, suporta em média duas músicas de cada lado e atende a duas demandas curiosas: DJs que gostam de fazer versões de uma mesma faixa para tocar nos bailes e artistas que não querem a superficialidade do single nem contam ainda com a profundidade das 12 músicas de um LP. Se um EP pode ser chamado de álbum? “Se um artista conseguir contar sua história nesse tempo, sim”, diz Nath. O primeiro lançamento nesse formato será o disco de Arthur Joly e convidados. Estão previstos também dois discos em 7 polegadas para o semestre: Alfredo Belo, o DJ Tudo, com Para Iemanjá, e Jorge Ben Jor e Rappin Hood com o single Guerreiro da Capadócia, em versões original e instrumental.

Ed Motta é um dos poucos brasileiros a colecionar discos de 10 polegadas. Ele primeiro felicita a fábrica: “Esses caras fazem o vinil com a melhor qualidade da América Latina”. E depois, dá uma breve aula sobre o 10 polegadas. “O formato durou pouco, era usado entre o 78 rotações e o 33. Mas teve uma força imensa. Muitos discos saíram assim, os primeiros do Caymmi, Ary Barroso, Doris Monteiro.” Os japoneses, indica Ed, contam com uma casa pioneira em recriar a magia do EP, o Ateliê Sawano, em Osaka. Ele fala do charme do formato e diz que o tempo de gravação nem parecia tão menor com relação ao LP. “Uns 20 e poucos minutos.” Ed também é provavelmente o único artista de sua geração a contar com um 10 polegadas em seu próprio nome. A convite do saxofonista finlandês Timo Lassy, gravou o EP When the Devil’s Paid, em 2017.

Ed Motta, raro colecionador de 10 polegadas Foto: DENISE ANDRADE/ESTADÃO

O vendedor de vinil, DJ e jornalista Ramiro Zwetsch, sócio da Patuá Discos, sente o termômetro dos tempos no microcosmo de uma loja de LPs da Vila Madalena. Suas vendas online subiram em 100%, de 5 mil discos por mês para mais de 10 mil. Um bom número, mas nem 50% do que simbolizava o faturamento total da loja física. Para ele, o vinil tem sido uma companhia nos dias de isolamento, uma das poucas indicadas à preservação da sanidade mental. “Sem shows ao vivo, as pessoas continuam precisando de arte. E o vinil foi o que segurou a onda de muita gente.” A experiência, ele diz, é outra. “É mais íntima do que a audição de um streaming. As pessoas podem manuseá-lo, ler o encarte. E um LP exige. Ao acabar um lado, você precisa virar o disco para seguir ouvindo.”

Gil: para ele, só as capas valiam a pena Foto: FELIPE RAU/ESTADÃO

Mas a força do vinil não é um consenso e um dos outros lados vem, justamente, do próprio meio artístico. São raros os cantores, mesmo criados na época dos LPs, que o cultuam com a mesma religiosidade de seus próprios fãs. Ed Motta é uma exceção e Paulinho da Viola tem um amplificador Marantz dos anos 1970 em sua sala ao lado de pilhas de vinis. Mas Milton, Chico, Caetano, Rita Lee, Ney, Jorge Ben Jor, Maria Bethânia, Roberto Carlos ou Gal Costa não estão ligando nada sobre a plataforma de onde saem suas vozes. “Eu só sinto falta das capas. Para mim, o som digital está ótimo”, diz Gilberto Gil.

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.