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Cultura Celina

Angela Ro Ro: 'Sou lésbica diamante, mereço fila de prioridade'

A artista, que faz 70 anos, conta que quer escrever biografia, revela nova paixão e se assume como inspiração para as pessoas 'saírem do armário'
A cantora e compositora Angela Ro Ro Foto: Bob Wolfenson / Divulgação
A cantora e compositora Angela Ro Ro Foto: Bob Wolfenson / Divulgação

RIO - Cinco dias antes de morrer, a mãe, Conceição, deu a dica: “Você dizia que lixo era reciclável. Eu aprendi isso. Agora vê se você aprende.” Esta quinta-feira, em seu retiro em Saquarema, Angela Ro Ro pode dizer que a “autolição” vingou: com saúde, disposição e bom humor, ela completa 70 anos. Quase duas décadas depois de perder 70 quilos ao abandonar vícios acumulados em uma vida tão intensa quanto a dos seus blues e rocks, a cantora e compositora pensa em escrever uma biografia “em volumes” — mas antes quer soltar “um livrinho de contos eróticos, contos infantojuvenis, poesia, haikai, tudo misturado”.

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Dos artistas mais sem papas na língua da MPB, lésbica “diamante, invicta”, Angela só volta agora aos palcos em 18 de janeiro, no Teatro Rival, com canções (“Amor meu grande amor”, “Simples carinho”) e bom falatório.

— Mas hoje em dia eu faço piada evitando criar inimizades! — avisa.

Você chega aos 70 anos com um corpinho de...

De 70 mesmo. Em 1999, eu recuperei minha saúde de uma década de 90 não muito estável. Eu estava com 130 quilos, passei para estes 60 que fui mantendo graças a dietas. Larguei um monte de vícios. Do tabaco, infeliz, que é o mais difícil de se largar e o mais fácil de se achar, à bebida, que até criança compra. Se esses dois já detonam, imagina os outros vícios...

E como foi possível isso?

Consegui graças ao meu eu acima de tudo, à força de vontade. Porque eu não tenho santo, anjo da guarda, Deus, religião... Eu tenho uma fé na vida e em mim. Volta e meia ainda faço uns exames, mas o boneco não está chiando, não. Andei muito de bicicleta nesse Rio de Janeiro e na Região dos Lagos. Suei as banhas todas e fiz um liftingzinho, porque, com 70 quilos a menos meu pescoço ficou parecendo o de um pelicano sem o peixe.

Alguma saudade daquela Angela de outros tempos?

Cara, 30 anos atrás eu ficava parada no palco em uma marca: do lado de um cinzeiro e de um copo de uísque com gelo. Hoje em dia eu estou livre! Eu não voltaria aos meus 40 anos, de jeito nenhum! Aos 70 anos eu danço, não paro quieta, canto “Malandragem” pulando que nem um cachorrinho. Cansa um pouco, mas cansa normal. Eu saía do palco mais cansada quando estava com 40, 45 anos. Estou me sentindo maneira.

Como vai ser o aniversário este ano?

Como não tinha shows marcados, vou para a casa de Saquarema do papai e da mamãe, que agora é minha. Esse ano estou amando e sendo amada. Eu estava sozinha num canto quando aí chegou uma mulher linda, divina, maravilhosa, inteligente, boa de caráter, uma pessoa maravilhosa. Estou apaixonada por ela e ela por mim, não tem assimetrias. Não vou dizer nomes, só digo que o tanto que eu convivi com ela em nove meses foi mais do que com muita gente com quem passei anos e anos.

Alguma vez você se considerou injustiçada?

Carreira é carreira, e disso eu realmente não posso reclamar, fui cantada até por Elizeth Cardoso (“Só nos resta viver”) . Só tenho a reclamar da parte pessoal, do que eu, como mulher, sofri na mão de polícia, de preconceituosos e de fofoqueiros. Mas é muito maior o carinho que a ofensa. Os danos feitos pelas polícias ou milícias, que eu pago e paguei sempre para me proteger, isso eu entrego à vida, porque eu não sou de rogar praga. E o estrago feito no meu corpo físico não atingiu o meu espírito, não atingiu a minha felicidade e nem a minha alegria de viver.

Uma vez você disse ser a única cantora lésbica da MPB...

Eu sou uma comediante! E acho que, de uma certa forma, eu continuo sendo. Lésbica diamante, invicta. E fui quem inaugurou isso, a beijos e tapas. Desde a primeira entrevista, eu abri a boca e falei. Perguntaram se eu era bissexual e eu disse que só tinha uma genitália. Nunca tive caso com homem, acredite se quiser. Acho que sou lésbica diamante, mereço fila de prioridade. “Lésbicas diamante, por aqui!” Eu fiz isso há 40 anos, levei um pouquinho na cara, mas acho que valeu a pena ser corajosa. E estou achando muito boa essa liberdade de hoje, as pessoas saindo do armário, acho isso muito sadio. É bom para a pessoa e para o público da pessoa, que aprende a ser menos preconceituoso e amar o seu ídolo de qualquer jeito.

O que tira o teu humor?

Ah, é raro, porque eu tenho vários tipos de humor. Humor inglês, sarcástico, infantil... humor pérfido tipo Bette Davis . Para me tirar o humor, vai ser muito difícil, porque eu já passei por cada uma... Meu múltiplo humor é como um múltiplo orgasmo: acontece uma desgraça, vem a verve da comediante, e isso me salva muito na minha vida.

Você é das que acreditam que o país já passou por tempos piores que o atual?

Nada é pior do que hoje. Hoje está nos faltando água, ar, terra, dignidade, direitos humanos. Por mais sagitário — ou sagiotária — que eu seja, tudo está sempre piorando. Estamos vivendo um período de boçalidade no poder em quase todo o mundo, e a boçalidade é a irmã mais feia da burrice, da maldade e da crueldade. Os boçais estão no poder e eles são robôs enfurecidamente cegos. A mim cabe a guerrilha pacífica que é a arte, ela é minha única arma.

Você se imagina aposentada?

Agora vou ficar nervosa! Ai, cadê meu humor? Eu não tenho previdência, até hoje ninguém dá a pensão do meu pai... É um pânico pensar na aposentadoria. Eu não posso ficar doente, minhas despesas são todas cobertas pelo meu trabalho. Se eu não for à luta, não tenho como comer amanhã.

Você falava que certas músicas que cantava eram praticamente um “kit suicídio”.

Isso era no palco! Eu durmo e acordo amando a vida. Já estive em situações de correr muito perigo de morrer e aí é que você gosta ainda mais da vida. Gosto da vida desde pequenininha, nunca dei bandeira, nunca entrei em depressão. A vida realmente é bela e só nos resta viver bem, porque a gente merece.