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PROCESSO ADMINISTRATIVO NO 08012.003918/2005-14

Representada:      Telemar Norte Leste S.A.

Advogados:           Caio Mário da Silva Pereira Neto, Paulo Leonardo Casa Grande, Schermann Chrystie Miranda e Silva.

Relator:                 Conselheiro Márcio de Oliveira Júnior

Voto-Vogal:          Conselheira Ana Frazão

 

 

EMENTA: Mercado de telefonia fixa na Região I do Plano Geral de Outorgas – PGO. Monitoramento de ligações realizadas para o Serviço de Atendimento ao Consumidor de concorrentes. Ação de telemarketing ofertando vantagens comerciais de acordo com a duração da chamada ao SAC, o grau de adimplência e a média mensal de serviços utilizados pelos clientes. Conduta passível de enquadramento no art. 20, I e IV c/c art. 21, IV e V, da Lei 8.884/94. Pareceres da SG e da ProCADE pela condenação. Parecer do MPF pelo arquivamento. Voto do Relator também pelo arquivamento. Voto-vogal pela condenação. 

 

 

I.         PROCESSO ADMINISTRATIVO SOB EXAME

  1. Trata-se de processo administrativo instaurado pela Secretaria de Direito Econômico – SDE em 11 de maio de 2011, para investigar a prática de infrações à ordem econômica no mercado de Telefonia Fixa da Região 1 do Plano Geral de Outorgas. Nos termos da nota técnica, a Telemar teria monitorado as ligações efetuadas por seus assinantes ao Serviço de Atendimento a Clientes de suas concorrentes Vésper S/A (“Vésper”), Empresa Brasileira de Telecomunicações S/A (“Embratel S/A”) e Click 21 Comércio de Publicidade (“Click 21”), com o objetivo de oferecer descontos diferenciados de acordo com o grau de adimplência, o nível de consumo e o tempo de duração da chamada ao SAC.

  2. As investigações no SBDC tiveram início a partir de ofício encaminhado à SDE pelo ex-Conselheiro Luiz Esteves Scallope em 2005, informando o órgão de notícias publicadas nos jornais Folha de São Paulo e Estado de São Paulo em 08 e 09 de maio, respectivamente, que denunciavam a prática de infrações à ordem econômica pela Telemar. No mesmo ano, a Embratel, a Vésper e a Click 21 apresentam representação, relatando que a Telemar havia se valido de vantagens regulatórias para impedir sua entrada no mercado.

  3. Em razão disso, foi instaurada Averiguação Preliminar em outubro de 2005. A SDE, todavia, recomendou o arquivamento do procedimento, ressaltando que a mera existência de um plano anti-Vésper não implicava necessariamente a existência de um ilícito anticoncorrencial, na medida em que a eliminação de rivais do mercado faz parte da disputa concorrencial. Destacou ainda a inexistência de preços predatórios e asseverou que a eventual violação à Lei Geral de Telecomunicações em razão de contratos de interconexão ou de outros contratos de prestação de serviços deveriam ser apurados pela ANATEL.

  4. O Tribunal do CADE, entretanto, deu provimento ao recurso de ofício, determinando a instauração de processo administrativo, nos termos do voto do Conselheiro Fernando Furlan. Segundo o Relator, havia indícios suficientes nos autos de que a Telemar havia utilizado vantagens decorrentes do controle da infraestrutura essencial do mercado de telecomunicações contra seus concorrentes e de que a prática poderia trazer prejuízos à livre concorrência.

  5. Instaurado o processo, a representada foi notificada para a apresentação de defesa. Além da incidência da prescrição intercorrente, alegou que (i) a Oi não era monopolista no mercado; (ii) a empresa competiu legitimamente, com base em seu mérito, não sendo possível cogitar de abuso e (iii) da conduta, não decorreram efeitos exclusionários.

  6. Após o encerramento da instrução, a ProCADE e a SG manifestaram-se pela condenação. Já o MPF opinou pelo arquivamento do processo por entender que não havia risco de fechamento do mercado.

  7. O Conselheiro Relator, Márcio de Oliveira Júnior, afastou a infração à ordem econômica. Nos termos do voto, o monitoramento das ligações de seus clientes para a Vésper já teria sido punida pela ANATEL. Assim, as promoções realizadas pela representada teriam sido lícitas, por terem o objetivo legítimo de proteger seu market share. Segundo o Relator, era esperado que a incumbente não aceitasse passivamente o ingresso e o crescimento de nova empresa no mercado, pois inexistia qualquer vedação à concorrência na Exposição de Motivos da Lei Geral de Telecomunicações. Ademais, não teria ficado comprovada a prática de preços predatórios nem o uso indevido de essential facility. Por fim, asseverou que a conduta da Telemar teria funcionado como uma forma de enfrentar as assimetrias existentes no serviço de telecomunicações, sobretudo diante da obrigação de universalização imposta à Telemar, exigência que não se aplicava às empresas-espelho, em razão do regime de direito privado a que estavam submetidas.

  8. Ao contrário do Conselheiro Relator, contudo, entendo que a conduta da representada configura infração à ordem econômica conforme será analisado a seguir.  

  9. Antes de proceder à análise do mérito, considero importante tecer algumas considerações sobre a preliminar de bis in idem. É o que passo a fazer.

 

II. PRELIMINAR DE BIS IN IDEM

  1. A preliminar de bis in idem deve ser afastada, tal como já demonstrou o Relator. Afinal, nada impede que o mesmo fato seja considerado ilícito para distintas esferas, como ocorre em relação à conduta que constitui ao mesmo tempo ilícito penal e ilícito administrativo.

  2. Tal cumulação de esferas punitivas, longe de ser uma anomalia, revela aspecto importante do poder punitivo estatal, que é a possibilidade da utilização de diversos meios punitivos, conforme a gravidade da infração e os bens jurídicos que são violados ou colocados em risco com a sua prática. Daí por que, mesmo sob a ótica restrita do Direito Administrativo Sancionador, não há óbices a que um mesmo fato ilícito esteja sujeito a distintas sanções administrativas, cada uma delas aplicada por determinada autoridade administrativa. Na verdade, em casos assim, há o dever-poder de cada uma das autoridades envolvidas de julgar a conduta de acordo com as suas respectivas competências,  parâmetros de análise e bens jurídicos a tutelar.

  3. Existem inúmeros exemplos desta cumulação, sendo um deles a situação em que uma mesma conduta praticada por determinado servidor público seja considerada simultaneamente ilícito disciplinar e ato de improbidade administrativa, caso em que ele estará sujeito aos procedimentos e às sanções de cada uma dessas duas ordens normativas, ainda que em razão do mesmo fato. Não é sem razão que a própria Lei de Improbidade Administrativa deixa claro que suas sanções devem ser aplicadas “independentemente das sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica” (art. 12).

  4. É por essa mesma razão que, voltando a atenção para o caso dos autos, um mesmo fato pode ser considerado ilícito regulatório e ilícito concorrencial. Na verdade, isso só demonstra a gravidade com que tal fato foi qualificado pelo legislador, que o sujeitou a diferentes regimes sancionatórios.

  5. Consequentemente,  a alegação de bis in idem não pode ser utilizada para afastar a competência de nenhuma das autoridades – nem da ANATEL nem do CADE - legitimamente autorizadas pela lei a julgar o mesmo fato ilícito.

  6. E nem se alegue, como afirmou o brilhante advogado da tribuna, que a situação seria semelhante aos casos em que o CADE afastou a possibilidade de infração à concorrência nas situações de sonegação fiscal. Nestas hipóteses, o bem jurídico violado é bem distinto da concorrência, de forma que somente de forma reflexa se poderia cogitar de infração concorrencial. Trata-se de questão semelhante ao que se chama na atualidade de “dumping social”, em que se alega que o descumprimento de normas trabalhistas pode gerar vantagens competitivas indevidas para o infrator, ensejando igualmente a prática de infração antitruste.

  7. Todavia, o caso dos autos é bem diverso. O fato ilícito apontado à representada coloca em risco diretamente a concorrência, motivo pelo qual não há dúvida de que há infração concorrencial, sendo o CADE competente para apreciá-la.

  8. O máximo que se pode cogitar, em situações como a descrita, é que, em razão dos princípios da reprovabilidade e da individualização da pena, que se projetam sobre o poder punitivo estatal como um todo, as sanções fixadas pelas diferentes autoridades sejam, em sua unidade, razoáveis e proporcionais à gravidade do fato. Dessa maneira, as diferentes autoridades teriam de levar em consideração, no momento da fixação da pena, as eventuais sanções já sofridas pelo agente diante do mesmo fato.

  9. Entretanto, ainda que prevaleça tal tese, como entendo ser correto, é inequívoco que a cumulação de esferas punitivas tem projeções apenas sobre a dosimetria da pena, mas jamais para afastar a competência de qualquer das autoridades judiciais ou administrativas responsáveis pela apuração e julgamento do ilícito. Por essa razão, levarei em consideração, no momento da fixação da pena, não apenas o fato de que a representada já foi apenada pela ANATEL, como também a extensão da sanção aplicada.

  10. Afastado o bis in idem, passo a examinar a alegação de prescrição.

 

III. ANÁLISE DE MÉRITO

III.1. PRESCRIÇÃO

  1. Em relação à prescrição, acompanho o relator para afastar a incidência do prazo prescrição, diante dos inúmeros fatos interruptivos existentes no processo. Todavia, não posso deixar de manifestar as dificuldades e o desconforto existentes em julgamentos sobre fatos tão antigos, em relação aos quais até mesmo o caráter dissuasório da sanção deixa de ter maior relevância.

  2. Entretanto, a conseqüência de situações como esta não pode ser, como pretende a representada, o mero arquivamento do processo. O excessivo lapso temporal não pode levar a tal efeito, embora possa e deva ser considerado na dosimetria, como se fará adiante.

 

III.2. DA ANÁLISE DA CONDUTA DA REPRESENTADA

            III.2.1. Da materialidade e da prova da conduta

  1. Como demonstra o voto do Conselheiro Relator, há provas inequívocas nos autos de que a representada rastreou a ligação de seus assinantes para o SAC da Vésper e classificou os usuários de acordo com a duração dessas chamadas em “curiosos”, “interessados” e “muito interessados”. A partir daí, a Telemar desenvolveu uma estratégia de marketing para impedir a migração dos clientes, oferecendo propostas diferenciadas para cada tipo de assinante a depender do tempo despendido na ligação, do valor médio da conta e o do histórico de inadimplência.

  2. Ademais, a própria representada admite a prática dos atos investigados, embora questione sua ilicitude. É o que demonstram os trechos da defesa colacionados abaixo:

“Dessa forma, conclui-se que a estratégia comercial da Oi de tentar evitar que seus clientes migrassem para a Vésper, bem como tentar recuperar os clientes que já haviam migrado, ao apresentar ofertas atrativas e que não caracterizam preços predatórios – aliás, vale frisar que sequer há qualquer acusação nesse sentido – consubstancia-se na prática lícita de concorrência pelo mérito. Afinal, esta tentativa fundamentou-se tão somente na conta com os clientes para o oferecimento de planos e serviços e não em qualquer impedimento imposto a seus usuários para que não mudassem a operadora”.

(...) Assim, ao utilizar informações de comportamento de consumidores para direcionar suas promoções (repita-se, já disponíveis a qualquer cliente interessado), a Oi concorre no mérito, incrementando o bem-estar dos consumidores. Impedir que a empresa faça isso é restringir a competição mesma que as normas concorrenciais visam proteger. Portanto, resta claro que a atuação da Oi no mercado de telecomunicações é legítima e pró-competitiva” (fl. 14 e 15, autos de acesso restrito à Telemar, grifos nossos).

  1. A manifestação apresentada após a instauração da Averiguação Preliminar foi ainda mais clara. Nela, a representada admite inequivocamente a existência de uma estratégia de marketing direcionada àqueles agentes clientes que ligavam para a Vésper e/ou para a Embratel. É o que revela o seguinte trecho:

“Sobre a estratégia da Telemar junto aos seus clientes que estabeleciam contato com as prestadoras Vésper e Embratel, referida pratica encontrava pleno respaldo na regulamentação de telecomunicações, pois as informações utilizadas pela Telemar foram produzidas a partir de dados de seu clientes, registrados nas centrais da própria Telemar e nunca a partir do dados de concorrentes. Não se tratavam portanto, de informações de terceiros concorrentes  e sua obtenção foi baseada na regra contida no Art. 72 da Lei no 9472, de 16.07.1997” (fl. 83, autos de acesso restrito à Telemar)

  1. Note-se que a alegação da representada de que estaria agindo sob o amparo do art. 72 da Lei 9472/1997 foi rejeitada expressamente pela ANATEL, conforme se verifica do trecho abaixo:

“22. Não há de se falar que, in casu, a conduta da concessionária está de acordo com o disposto no artigo 72 da LGT, tendo em vista que ela não se utilizou de informações relativas à utilização individual do serviço pelos usuários para a execução de sua atividade, como permitido pelo dispositivo. Mas, mais do que isso, utilizou-se de informações decorrentes de monitoramento e rastreamento às Centrais de Atendimento da Vésper, em benefício próprio, violando, portanto, não só o sigilo e a confidencialidade da interconexão das redes das duas empresas, como também a própria garantia de sigilo inerente aos usuários.

23. Não há dúvidas, portanto, de que a conduta da Telemar violou a legislação e a regulamentação aplicável ao Setor de Telecomunicações, em especial as normas apontadas no respectivo auto de infração do presente Pado, razão pela qual a concessionária merece ser punida com multa em valor razoável e compatível com a gravidade da infração, na forma do que dispõe o Regulamento de Sanções Administrativas, anexo à Resolução nº 344, de 18 de julho de 2003”.

  1. Dessa forma, ao contrário do que sustenta a representada, o acervo probatório dos autos não está alicerçado em análises subjetivas das intenções da reperesentada ou em eventual interpretação equivocada da linguagem agressiva utilizada nos documentos internos. A própria representada reconheceu a prática ora questionada, ainda que tenha buscado justificar a sua licitude.

  2. Ante a incontrovérsia dos fatos, entendo que a grande discussão do referido processo não está propriamente no conjunto probatório, mas sim na existência ou não de ilicitude. A referida análise, como se verá a seguir, perpassa temas delicados, como (i) a relação entre o direito da concorrência e o direito regulatório e (ii) as balizas que permitem constatar a existência de potencialidade lesiva da conduta.

 

III.2.2. Das repercussões do quadro regulatório e do julgamento da ANATEL sobre o caso concreto

  1. Como descrito anteriormente, o Conselheiro Relator descartou a prática de infração à ordem econômica em razão de o uso das informações constituir ilícito regulatório, que já foi punido pela ANATEL e, por ter constatado que as promoções realizadas pela representada eram lícitas, dado o estimulo da LGT à concorrência, a inexistência de preço predatório e/ou do uso indevido de essential facility.

  2. De fato, ao analisar o Processo Administrativo para Apuração de Descumprimento de Obrigação - PADO, a ANATEL aplicou multa de R$ 11.433.363,38 à representada, por entender que sua conduta havia violado regras contratuais e regulamentares, previstas no art. 24, II do Regulamento de Serviços de Telecomunicações, assim como os arts. 5º, 6º e 7º, inciso II, da Lei Geral de Telecomunicações – LGT e a cláusula 15.1, XXIII do contrato de concessão. Para facilitar a análise, transcrevo os referidos dispositivos abaixo:

Art. 24. Serão coibidos os comportamentos prejudiciais à livre competição, ampla e justa entre as prestadoras de serviço, no regime público ou privado, em especial:

II – o uso, objetivando vantagens da competição, de informações obtidas dos concorrentes, em virtude de acordos de prestação de serviço;

Art. 5º Na disciplina das relações econômicas do setor de telecomunicações, observar-se-ão, em especial, os princípios da soberania, nacional, função social da propriedade, liberdade de iniciativa, livre concorrência, defesa do consumidor, redução das desigualdades sociais e regionais, repressão aos abuso do poder econômico e continuidade do serviço prestado no regime de direito publico.

Art 6º. Os serviços de telecomunicações serão organizados com base no princípio da livre, ampla e justa competição entre todas as prestadoras, devendo o Poder Público atuar para propiciá-la, bem como para corrigir os efeitos da competição imperfeita e reprimir as infrações da ordem econômica.

Art. 7º Serão coibidos os comportamentos prejudiciais à livre, ampla e justa entre as prestadoras de serviço, no regime público ou privado, em especial:

(...)

II – o Uso objetivando vantagens na competição, de informações obtidas dos concorrentes, em virtude de acordos de prestação de serviços.  

Contrato de Concessão

Cláusula 15.1. Além das outras obrigações decorrentes deste Contrato e inerentes à prestação do serviço, incumbirá à concessionária:

XXIII – observar todos os direitos dos demais prestadores de serviços de telecomunicações, omitindo-se de praticar qualquer conduta discriminatória ou volta a obstar a atividade destes;

  1. A própria ANATEL, contudo, declarou expressamente que o objeto do referido processo não foi examinar a conduta sob o ponto de vista concorrencial, mas sim verificar o descumprimento de normas regulamentares e contratuais, como deixa claro o trecho abaixo:

"4.2.11. Já no que diz respeito à argumentação da requerente quanto à conclusão da SDE/MJ na referida Averiguação, considero que tal argumentação não deve prosperar, uma vez que o objeto deste PADO não é examinar a conduta sob o prisma concorrencial ou tendo por base as normas gerais de proteção à ordem econômica, consubstanciadas na Lei nº 8.884/94, mas sim, examinar descumprimentos às regras contratuais e regulamentares, conforme corroborado pela Procuradoria Federal Especializada da Anatel no Parecer nº 1658/2009. No caso em tela, comprovou-se infração ao art. 24, II, do Regulamento de Serviços, aprovado pela Resolução nº 73/1998; e aos arts, 5º, 6º e 70, inciso II, da Lei 9.472, além do inciso XXIII, da cláusula 15.1, do Contrato para prestação do STFC."

  1. De fato, a proibição do uso de informações privilegiadas em detrimento dos demais concorrentes, em virtude de acordos de prestação de serviços tem inspiração concorrencial. Não é sem razão que a ANATEL entendeu que, ao fazer uso das informações, a representada também violou os princípios gerais que orientaram a elaboração da LGT, quais sejam, a liberdade de iniciativa, a livre concorrência, a defesa do consumidor e o abuso de poder econômico, dentre outros.

  2. Essa constatação, contudo, não significa qualquer obstáculo à incidência da legislação antitruste. Além de todos os fundamentos já expostos na parte relacionada ao bis in idem, esse tipo de interpretação levaria a uma evidente distorção nos objetivos pretendidos pela reforma no mercado de telecomunicações brasileiro. Com efeito, o novo modelo de regulação do setor teve como propósito conferir maior espaço de atuação aos agentes privados, reduzindo, por meio da privatização, a prestação direta dos serviços por empresas estatais, assim como garantindo a imposição de limites ao poder econômico mediante o fortalecimento dos mecanismos de mercado.

  3. A partir da reforma do setor, cujo marco foi a Lei Geral de Telecomunicações, procurou-se criar um ambiente econômico concorrencial, em que as decisões econômicas relativas a preços, oferta, inovações e investimento fossem tomadas de forma descentralizada, sem que estivessem submetidas a uma relação de hierarquia entre a administração pública e os agentes econômicos. Isso explica a preocupação da LGT com a proteção à livre concorrência.

  4. Assim, não se pode pretender restringir o âmbito de aplicação da Lei 8.884/94 tão somente em razão de a decisão da ANATEL também ter estabelecido obrigações que visam a amparar o princípio da livre competição, até porque os critérios de análise de ambas as autoridades são nitidamente diversos. Com efeito, enquanto a ofensa à regulação não tem como foco principal os efeitos produzidos no mercado, o direito da concorrência exige, pelo menos, a potencialidade lesiva da conduta, de forma que o uso de informações por agentes que não detivessem poder de mercado dificilmente poderia ser considerado um ilícito antitruste.

  5. O raciocínio, aliás, é semelhante ao não compartilhamento de essential facility. Em regra, não sendo possível uma solução estrutural para o problema, dada a impossibilidade de o bem ser duplicado, a regulação exige que o acesso aos bens essenciais seja garantido com preços e condições que tornem viável e competitiva a atividade das empresas que deles dependem. No setor de telecomunicações, essa obrigação está prevista no art. 152 da Lei 9.472/1997.  Isso, entretanto, não afasta a incidência da legislação antitruste, caso haja o uso indevido do referido bem, que poderá ser punido como uma recusa ilegítima ao dever de contratar.

  6. Todas essas constatações advêm do fato reconhecido expressamente pelo Relator, ao afastar o bis in idem, de que “as análises, as referências normativas e os bens jurídicos tutelados são distintos”. Não é sem razão que, no âmbito da ANATEL, foram instaurados dois procedimentos: um relativo à infração da regulamentação setorial e o outro com o fim de apurar a existência de indícios de infração à ordem econômica.

 

III.2.3. Da impossibilidade de se cindir a conduta no âmbito da apreciação de seus efeitos anticoncorrenciais e da verificação da ilicitude

  1. O voto do relator deixa claro que a primeira parte da conduta da representada – obtenção e mapeamento indevido de informações concorrenciais da concorrente - foi ilícita. Há, portanto, um consenso nesse sentido. O relator apenas afastou a existência de infração concorrencial porque considerou que a conduta deveria ser cindida em duas, sendo que a ilicitude estaria apenas na primeira parte. Assim, considerando que a ANATEL já teria punido a representada pela primeira parte da conduta, nada haveria a ser punido pelo CADE, já que a segunda parte da conduta seria lícita.

  2. Todavia,  ao meu ver, não é possível cindir o (i) uso ilícito das informações e (ii) a realização de promoções, tal como propôs o Relator. Na verdade, o meio utilizado para a oferta dos planos de telefonia aos assinantes da Telemar, qual seja, o monitoramento indevido das ligações realizadas ao SAC da concorrente Vésper, exerce um papel de extrema relevância sobre a análise da conduta.

  3. Afinal, a segunda parte da conduta está conectada lógica e materialmente à primeira parte. A representada só conseguiu elaborar e tentar implementar a prática comercial ora em julgamento porque obteve indevidamente os dados sensíveis do concorrente, de forma que a ilicitude do meio compromete a totalidade da conduta.

  4. Com efeito, é impossível sustentar, como pretende a representada, que houve a concorrência pelo mérito, na medida em que a Telemar se valeu de uma evidente vantagem como incumbente, cujo uso era vedado pela regulação, para tentar impedir o desenvolvimento das concorrentes ou pelo menos tentar criar-lhes embaraços consideráveis a partir de instrumentos e estratégias ilícitos. A vantagem utilizada não decorreu de sua maior eficiência, mas tão somente do aproveitamento abusivo de sua condição de incumbente.

  5. Como ressalta a representação, a referida conduta só foi possível porque a representada detinha acesso privilegiado às informações sobre o tráfego telefônico nas redes de seus rivais e sobre o perfil de consumo de mais de 90% dos usuários dos serviços de Telecomunicação da Região I do PGO.

  6. Assim, independentemente da inexistência de preços predatórios, a forma como foi construída a estratégia de marketing da Telemar já constitui uma infração à ordem econômica, especialmente diante da potencialidade lesiva da conduta, como se verá adiante. Aliás, a existência de preços predatórios não constitui sequer objeto do referido processo, motivo pelo qual é desnecessário ingressar nesse tipo de discussão.

  7. Obviamente que não se pretende dizer que a Telemar estivesse obrigada a suportar o desvio de seu market share pela concorrente. Era-lhe autorizado concorrer, mas, por óbvio, apenas mediante meios e instrumentos lícitos. O fato de a Lei Geral de Telecomunicações estimular a concorrência por parte dos incumbentes não significa, assim, que a representada estivesse autorizada a praticar abusos unicamente para impedir a conquista de poder de mercado pela entrante.

  8. Naturalmente, é legítimo que empresas realizem práticas de análise de mercado a fim de conhecer o perfil de seus clientes para ofertar os produtos que melhor se ajustem às necessidades de seus usuários. Da mesma maneira, é desejável que concorrentes disputem clientes no mercado, seja por preço ou diferenciação de produtos.

  9. A prática de monitoramento da Telemar, entretanto, não decorria de meios legítimos destinados a conhecer o comportamento do negócio e as necessidades do usuário de forma geral. Pelo contrário, o que se conclui dos autos é que estava em curso um movimento direcionado especificamente aos clientes que entravam em contato com a Vésper. Somente esses clientes eram monitorados pela representada e recebiam ofertas específicas de acordo com seu nível de consumo, adimplência e a duração da chamada ao SAC.  E, o que é mais grave, tal conduta apenas foi possível em razão da utilização de meio manifestamente abusivo.

  10. Portanto, ao contrário do que pretende a representada, a conduta não se confunde com simples marketing ativo, hipótese em que não haveria que se cogitar de infração à ordem econômica. De fato, a oferta aos consumidores de preços e condições melhores para garantir a fidelização estimula a concorrência entre os agentes econômicos. No caso sob análise, porém, a representada valeu-se de informações proibidas para subverter os objetivos pretendidos pela própria obrigação de interconexão: a proteção à livre concorrência.

  11. Assim, ao contrário que preconiza o voto do Relator, a meu ver, o objeto da conduta não foi meramente a oferta de promoções e condições mais vantajosas ao cliente, mas sim dificultar ou tentar fazê-lo, mediante a utilização de meios ilícitos, a entrada e o desenvolvimento da empresa-espelho Vésper.

  12. Importante notar também que a própria campanha publicitária da representada reforça a potencialidade lesiva da conduta. De fato, as provas dos autos demonstram que o mapeamento das ligações realizadas pelos consumidores era realizado de forma ostensiva. Na Bahia, por exemplo, a empresa conseguiu rastrear as ligações de 100% dos clientes, mesmo daqueles que ligaram uma única vez para o SAC  da Vésper.

  13. Ademais, é pouco razoável imaginar que a Telemar iria arriscar-se, praticando um ilícito regulatório grave, se a referida estratégia não fosse idônea para prejudicar o estabelecimento da concorrente no mercado. Acresce que o prejuízo à empresa-espelho, praticamente a única concorrente nesse mercado, representava uma ameaça inequívoca à livre concorrência, como será mais bem examinado a seguir.

 

III.2.4. Das características da infração de perigo: irrelevância da  inexistência de comprovação de danos

  1. A representada alega que a conduta sob análise não tinha capacidade nem produziu nenhum efeito concreto no mercado de telefonia fixa da Região 1, motivo pelo qual o processo administrativo deveria ser arquivado. Para reforçar seu entendimento, juntou aos autos parecer do ex-Conselheiro Marcos Paulo Veríssimo, cujas principais conclusões foram: (i) o abuso de posição dominante exige a prova, ao menos, da potencialidade de fechamento de mercado; (ii) a autoridade antitruste tem de demonstrar que a prática adotada pelo investigado tem condições reais e, alta probabilidade, no mínimo de excluir do mercado competidores eficientes; (iii) em casos de condutas praticadas por um período largo de tempo, a análise de efeitos deve concentrar-se nos efeitos concretamente produzidos; (iv) o elemento volitivo do agente deve ser, em princípio irrelevante, de forma que o se examina é o conteúdo objetivo da conduta e não a vontade do agente; (v) ilícitos antitruste exigem a produção de efeitos e não se confundem com ilícitos regulatório e com concorrência desleal.

  2. Não assiste razão à representada. Em primeiro lugar, como acertadamente advertiu a SG, o ilícito antitruste constitui uma infração de perigo, de modo que basta a potencialidade lesiva da conduta para que fique configurada a infração à ordem econômica. Assim, a ameaça ao bem jurídico, desde que relevante, é suficiente para que se conclua pela ilicitude.

  3. Obviamente, algumas vezes essa potencialidade pode envolver discussões delicadas, pois determinados riscos, a depender do contexto sob exame, podem se afigurar muito pouco significativos do ponto de vista concorrencial, de forma que não seria possível cogitar da infração à ordem econômica. Aliás, o estabelecimento dessas balizas é um dos desafios da autoridade antitruste.

  4. No caso sob exame, a representada alega que deveria haver uma “alta probabilidade” de danos à concorrência, cuja prova ficaria a cargo do CADE, para que a prática pudesse ser considerada um ilícito antitruste. Sugere, ainda, que o fato de não terem sido produzidos efeitos, embora a conduta tenha perdurado por dois anos, demonstraria a inexistência de potencialidade lesiva.

  5. Em primeiro lugar, cumpre ressaltar que a mera circunstância de a Vésper ter aumentado o seu market share não é prova da inexistência de danos, já que a estratégia da representada pode ter sido eficiente, senão para impedir ou dificultar o crescimento da concorrente, pelo menos para diminuir o seu ritmo. Em segundo lugar, ainda que fosse possível a prova cabal da inexistência de efeitos, não se poderia atrelar, em nenhuma circunstância, a constatação da potencialidade lesiva a tal prova, sob pena de se transformar, por meio de um artifício retórico, uma infração de perigo em uma infração de dano.

  6. Assim, ao contrário do que sugere a Telemar, a potencialidade lesiva não deve ser aferida por meio da constatação da produção ou não de efeitos anticompetitivos, sob pena de se esvaziar o disposto na legislação antitruste. Esse raciocínio, aliás, quando associado à extensão temporal da conduta, poderia levar a uma evidente distorção: condutas que perdurassem mais tempo, cujos efeitos não ficassem comprovados, deixariam de ser apenadas, ainda que não houvesse a demonstração da inexistência de potencialidade lesiva, enquanto práticas de menor duração ficariam sujeitas a um ônus probatório mais rigoroso, já que não poderiam contar com a suposta comprovação da inexistência de efeitos. Haveria, portanto, um bônus para infrações de perigo mais longas, o que, obviamente, é desarrazoado. 

  7. É inequívoco que o fato de supostamente não terem sido produzidos efeitos lesivos, independentemente do tempo por que perdurou a conduta, não significa que a concorrência não tenha sido exposta a risco.

  8. Dessa maneira, está correta a conclusão da SG no sentido de que não há nos autos provas de que não teria havido prejuízo à livre concorrência, já que o fato de o market share da Telemar ter diminuído e de o market share da representante ter sofrido um pequeno acréscimo, mesmo durante a prática da conduta, não afasta a existência de efeitos anticoncorrenciais. De fato, não se sabe qual teria sido o real crescimento da Vésper caso a prática não tivesse ocorrido. Além disso era esperado que a participação de mercado da Telemar sofresse um decréscimo com a supressão do monopólio.

  9. Por fim, não merece acolhimento o argumento de que o caso se identificaria com a questão tratada no voto proferido na AP nº 53500.007820/2004, de minha relatoria. Na ocasião, de fato, destaquei que, diante do fato de a participação de mercado da Telemar ter sido contestada nos últimos anos e de ter havido um descréscimo em sua participação de mercado, não seria possível falar em infração à ordem econômica.

  10. A análise cuidadosa do voto, todavia, demonstra que, na verdade, não havia sequer a potencialidade de danos à concorrência naquele caso. De fato, os contratos de fomento de tráfego celebrados pela Telemar continham cláusulas facultativas de exclusividade. Ademais, as características do mercado downstream, notadamente a existência de um número expressivo de provedores de acesso à internet, afastavam a possibilidade de fechamento de mercado, de forma que o referido precedente não se presta a afastar a ilicitude da conduta sob exame.

 

III.2.5. Os riscos concretos à concorrência decorrentes da conduta da representada: o caso concreto não trata apenas de concorrência desleal

  1. Note-se que, no caso sob exame, a Telemar detinha, à época dos fatos, mais de 90% de participação de mercado e controlava o acesso à infraestrutura essencial de telefonia fixa, o que permitia que tivesse acesso ao perfil de consumo de quase todos os clientes do mercado. De posse dessas informações, a representada teria plenas condições de direcionar seus esforços no sentido de sistematicamente impedir a entrada de qualquer novo concorrente, colocando sob risco a livre concorrência.

  2. O fato de não haver provas nos autos de que as ofertas eram discriminatórias e/ou da existência de preços predatórios, como ressaltado anteriormente, não afeta a conclusão. Com efeito, mesmo que os planos ofertados fossem autorizados pela ANATEL, é inequívoco que o fato de a representada saber exatamente os clientes que tinham a intenção de mudar de operadora de telefonia, lhe permitia dificultar, de forma anormal e a partir de uma vantagem decorrente apenas de sua condição de incumbente – e não da sua maior eficiência ,  o estabelecimento da concorrente, sem que tivesse de comprometer seus lucros. Presumindo a insatisfação do consumidor, bastava oferecer os seus planos mais vantajosos para aqueles clientes específicos para garantir a fidelização.

  3. Essa possibilidade garantiu vantagens extremamente relevantes à representada, que, como salientou o Conselheiro Relator, não estavam disponíveis a nenhum outro agente do mercado. De fato, o referido rastreamento só era possível em razão do controle da infraestrutura de telefonia fixa daquela Região pela concessionária. Trata-se, portanto, de caso clássico de abuso de posição dominante por parte do incumbente titular da infraestrutura essencial.

  4. E nem se cogite, como tenta convencer a representada, de que o problema aqui exposto seria meramente de concorrência desleal. Afinal, em um mercado em que a incumbente conta com 90% de participação de mercado e a concorrência é estruturada em torno da empresa-espelho, atacar esta última – a concorrente – é atacar a própria concorrência.

  5. Com efeito, em mercados muito concentrados ou situações de monopólio/entrante ou de quase-monopólio, as linhas divisórias entre a concorrência desleal e o abuso de poder econômico são tênues, já que as práticas ilícitas do titular de posição dominante que afetam algum concorrente – ainda mais quando se trata do principal concorrente, como é o caso concreto – afetam igualmente a concorrência e o mercado como um todo.

  6. Vale lembrar que a relação entre concorrência desleal e direito antitruste já foi examinada pelo CADE na Averiguação Preliminar nº 08000.026056/1996-30[1], hipótese em que também se discutia a utilização de informações privilegiadas em detrimento de determinada concorrente.

  7. Ao analisar a prática de preços predatórios pela White Martins Gases Industriais S/A, o Conselho entendeu que havia indícios de que a representada estava criando dificuldades à constituição e ao funcionamento da Oxigases Ltda, exigindo informações mercadológicas da referida empresa, para, posteriormente, oferecer os mesmos produtos a seus clientes por preços mais baixos. Em razão disso, determinou-se a instauração de nova investigação.

  8. Ao examinar a referida conduta, entretanto, a SG, a ProCADE e o MPF opinaram por seu arquivamento por entenderem que se tratava de prática de concorrência desleal e não de ilícito antitruste. Neste sentido, a SG destacou que “uma prática de concorrência desleal que produza lesões apenas no concorrente prejudicado (interesse individual, de natureza privada) sem comprometer as estruturas da livre concorrência não configura infração à ordem econômica”. E concluiu que a utilização das informações comerciais pela representada para oferecer preços e condições de comercialização mais vantajosas para os clientes da representante poderia ter causado prejuízo à concorrente, mas que não havia prova nos autos de que a conduta trouxe ou poderia trazer prejuízo ao mercado ou à livre concorrência. 

  9. É interessante notar que o  Conselheiro Relator, todavia, divergiu dos pareceres mencionados. Observou que o fato de determinada conduta caracterizar concorrência desleal não afasta per se a competência da autoridade antitruste para julgar a matéria e que, em razão do inconstestável poder de mercado da representada, que à época chegava a 73%, a conduta investigada teria sim potencial de eliminar a concorrência e colocar em risco a ordem econômica. Ao final, todavia, votou pelo arquivamento da Averiguação preliminar, por não haver nos autos nenhuma evidência de que a representada houvesse utilizado as informações mercadológicas contra empresa concorrente.

  10. Raciocínio análogo pode ser aplicado ao caso sob exame.  De fato, ao analisar a lei 8.884/94, Calixto Salomão[2] defende que qualquer ato de concorrência desleal, na medida em que pode prejudicar o concorrente, pode potencialmente ter como objeto dominar mercados ou a isso levar o agente. Essa observação é particularmente relevante quando se trata de um agente monopolista e de uma entrante, em um mercado caracterizado por elevadas barreiras à entrada.

 

III.2.6. Da constatação da potencialidade lesiva da conduta da representada

  1. Segundo a representada,  a potencialidade ofensiva a que se refere a lei deve ser traduzida na “alta probabilidade”. Além de tal critério estar sujeito a considerável grau de subjetividade e vagueza, o fato é que a infração de perigo, para efeitos do Direito Administrativo Sancionador, tanto pode ocorrer sob a modalidade do perigo concreto – em que a probabilidade é alta -, como também pode ocorrer sob a modalidade do perigo abstrato – em que basta a possibilidade consistente de produção de efeitos lesivos.

  2. Aliás, o Direito Administrativo Sancionador supre, neste ponto, uma das dificuldades do Direito Penal que, em razão de suas características – notadamente a de lidar com infrações de maior gravidade, que, exatamente por isso, normalmente requerem a ofensa ao bem jurídico tutelado -, encontra muitos obstáculos para lidar com o perigo abstrato. Daí por que, no âmbito do Direito Penal, são mais adequadas as infrações de dano ou de perigo concreto, traduzido na alta probabilidade do dano.

  3. Entretanto, o Direito Administrativo Sancionador goza de maior flexibilidade, motivo pelo qual a ele não são estranhas as infrações de perigo abstrato. Basta olharmos o Código Nacional de Trânsito e lá encontraremos diversas hipóteses nesse sentido.

  4. É certo que a infração antitruste tem peculiaridades que impedem uma comparação linear com demais infrações administrativas. Mas é igualmente certo que não se pode exigir que a infração antitruste, para a sua configuração, esteja sujeita aos  parâmetros rigorosos do Direito Penal, ainda mais quando a lei é clara no sentido de que basta a potencialidade ofensiva. Por essa razão, não é necessário haver a alta probabilidade de efeitos lesivos, sendo suficiente a possibilidade consistente de que isso ocorra.

  5. De toda sorte, no caso sob exame, uma série de fatores - a condição de praticamente monopolista da representada, as elevadas barreiras à entrada nesse mercado e a condição de entrante da Vésper - demonstram que não seria desarrazoado nem mesmo se cogitar de uma “alta probabilidade” de efeitos lesivos. De fato, o ostensivo controle realizado pela Telemar sobre as ligações realizadas ao SAC da concorrente tinha claro potencial de prejudicar, de forma ilícita, a capacidade de concorrer da Vésper.

  6. Entretanto, ainda que não houvesse a  “alta probabilidade”, tal como defendido pela representada, tal circunstância não afastaria a configuração à ordem econômica. Como já salientado, o ilícito antitruste constitui uma infração de perigo, incluindo a modalidade de perigo abstrato, de modo que basta a possibilidade consistente de efeitos anticompetitivos para que fique caracterizada a ilicitude.

  7. Utiliza-se aqui a expressão “possibilidade consistente” tão somente para mostrar que o referido  critério não é atendido por meras conjecturas e especulações, bem como por digressões marcadas por grande generalidade e abstração. Todavia, o critério é perfeitamente atendido sempre que a autoridade antitruste puder verificar que existe uma relação concreta entre a prática analisada e os efeitos lesivos que lhe são atribuídos, bem como que os efeitos potenciais são ligados à conduta a partir de um nexo de pertinência e adequação.

  8. É o que ocorre no caso concreto, em que a prática da representada – reconhecida por ela, aliás – tinha potencial concreto para criar óbices à entrante, havendo total pertinência e adequação entre os meios utilizados pela representada e os fins ilícitos que dele poderiam resultar. Todos esses argumentos ganham reforço diante das características da conduta ora analisada e do mercado, e ante a presença quase monopolista da Telemar, motivo pelo qual não há como afastar a potencialidade lesiva da conduta.

  9. Entender de modo contrário, como pretende a representada, sujeitando a configuração da infração antitruste à comprovação da alta probabilidade da produção de efeitos anticompetitivos, tornaria praticamente impossível a condenação de uma infração da qual não resultaram danos, até porque a prova da “alta probabilidade” lesiva seria diabólica.

  10. Por fim, ressalto que o mero fato de haver assimetrias no mercado, sobretudo em razão da obrigação de universalização imposta a Telemar, não autorizaria esse tipo de prática, ao contrário do que sugere o Conselheiro Relator. Aliás, justamente para amenizar a existência de eventuais distorções em razão dos diferentes regimes a que estavam submetidas as concessionárias e as demais empresas, a LGT previu expressamente que o custeio da universalização se daria por meio  (i) dos orçamentos da União, dos Estados, do DF e dos municípios e (ii) por um fundo constituído para essa finalidade para o qual contribuirão as prestadores de serviços de telecomunicações nos regimes público e privado (art. 81).

  11. Embora nem todas as obrigações decorrentes da universalização estejam inseridos na hipótese, a criação do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicação (FUST) pela Lei 9.998/2000 deixa claro que a preocupação da lei, ao disciplinar expressamente a forma de financiamento da universalização, foi assegurar a manutenção de condições concorrenciais no setor, não havendo que se cogitar, de nenhuma forma, de autorização para práticas lesivas à concorrência apenas para compensar a distinção de regimes entre a concessionária e a empresa-espelho.

  12. Demonstrada a inexistência de meios concorrenciais legítimos na realização das promoções e a potencialidade lesiva da conduta, entendo que a representada praticou ilícito antitruste, por ter abusado de sua posição dominante, criando dificuldade indevida e injustificável ao desenvolvimento da Vésper no mercado de telefonia fixa.

 

IV. CONCLUSÃO

  1. Assim, condeno a representada pela prática de infração ordem econômica prevista nos arts. 20, I e IV c/c art.21, IV e V, da Lei 8.884/94 e, em atenção aos critérios legais de dosimetria previstos no art. 45 da Lei 12.529/2011, aplico a alíquota mínima sobre o faturamento bruto no ramo de atividade da empresa, (i) por se tratar de conduta unilateral, (ii) por não haver provas nos autos de produção de efeitos anticoncorrenciais, (iii) pelo fato de a representada já ter sido punida pela ANATEL e (iv) também em razão do lapso temporal considerável entre a prática e o seu julgamento, o que recomenda a maior parcimônia do julgador, considerando que a finalidade dissuasória da pena está irremediavelmente comprometida. 

  2. Ante o exposto, voto pela condenação da representada e pela aplicação de multa no valor de R$ 26.588.422,59, conforme a memória de cálculo descrita em anexo.

É o voto.

 

Brasília, 11 de março de 2015.

 

ANA FRAZÃO

Conselheira do CADE

 

 

[1]Averiguação Preliminar nº 08000.026056/96-30, Conselheiro Relator Luiz Carlos Delorme Prado, julgada em 31 de janeiro de 2007.

[2] SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito concorrencial – as condutas. São Paulo: Malheiros, 2003, p.103.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

ANEXO I - MEMÓRIA DE CÁLCULO

Faturamento no ramo de atividade (item 112 da Resolução nº 03/2012) em 2010

R$ 19.069.370.000, 00

Taxa SELIC

1,3943

Faturamento atualizado

R$ 26.588.422.591,00

Valor da multa

R$ 26.588.422,59

 

 

 


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Documento assinado eletronicamente por Ana de Oliveira Frazão Vieira de Mello, Conselheiro(a), em 16/03/2015, às 14:58, conforme horário oficial de Brasília e Resolução Cade nº 11, de 02 de dezembro de 2014.


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A autenticidade deste documento pode ser conferida no site sei.cade.gov.br/autentica, informando o código verificador 0032877 e o código CRC 269900EA.




Referência: Processo nº 08012.003918/2005-04 SEI nº 0032877