Cozinhando Discografias: George Harrison

/ Por: Cleber Facchi 29/02/2024

Embora tenha conquistado o título de “o Beatle silencioso”, efeito direto da postura tímida em relação aos demais membros da banda, principalmente John Lennon e Paul McCartney, em carreira solo, George Harrison talvez seja o integrante do quarteto de Liverpool que mais se aventurou criativamente. Além da rica discografia, o músico acumula passagens pelo cinema, colaborações com diferentes artistas, trabalhos humanitários, um forte papel na divulgação do hinduísmo no ocidente e até um pézinho na Fórmula 1.

São quase seis décadas de intensa produção artística e movimentos inusitados que vão da produção eletrônica ao criativo diálogo com a música oriental, estímulo para um repertório talvez enxuto, efeito direto da morte precoce do artista, vítima de um câncer aos 58 anos de idade, mas que continua a reverberar até hoje. Para celebrar a obra do cantor, compositor e produtor britânico, trago todo o catálogo de estúdio do artista agora organizado do pior para o melhor lançamento em mais uma edição do Cozinhando Discografias.


#12. Electronic Sound
(1969, Zapple)

No início de 1969, os integrantes dos Beatles decidiram criar um selo dentro da gravadora Apple especializado em música experimental. Batizada de Zapple, a subsidiária que durou apenas quatro meses teve dois discos lançados nesse curto período de tempo: Unfinished Music No. 2: Life with the Lions (1969), de John Lennon e Yoko Ono, e o curioso Electronic Sound (1969), de George Harrison. Gravado em Los Angeles, durante uma estadia do músico inglês, o registro de duas faixas foi concebido a partir de experimentações com um sintetizador Moog série 3. De um lado, Under the Mersey Wall, com quase 19 minutos, no outro, No Time or Space, com mais de 25 minutos de duração. São improvisos, texturas e ambientações eletrônicas que desagradaram público e crítica na época em que o disco foi lançado, mas que conquistaram o status de “cult” ao longo dos anos.  


#11. Gone Troppo
(1982, Dark Horse)

Inconformado com os rumos da indústria da música no começo da década de 1980, George Harrison parecia claramente deslocado. Exemplo disso fica mais do que evidente ao mergulharmos nas canções de Gone Troppo (1982), obra que mira em diferentes propostas criativas, porém, acerta em poucas delas. Como o próprio título do trabalho logo aponta, uma gíria australiana para pessoas que enlouqueceram por conta do calor excessivo, trata-se de uma delirante combinação de estilos que vai do pop ensolarado ao rock dos anos 1970 de forma totalmente irregular. É como uma estranha tentativa do artista em simplificar tudo aquilo que havia explorado nos últimos trabalhos de estúdio. O próprio cantor se recusou a promover o material, fazendo com que mesmo boas composições, como Dream Away e That’s the Way It Goes, fossem completamente esquecidas. Cansado, Harrison só voltaria cinco anos mais tarde com um novo disco de inéditas, o bem-recebido Cloud Nine (1987).


#10. Somewhere in England
(1981, Dark Horse)

Em setembro de 1980, quando George Harrison apresentou a primeira versão de Somewhere in England aos executivos da Warner Bros. Records, responsáveis pela distribuição de suas obras, o músico se sentiu frustrado. Do repertório considerado pouco comercial à imagem de capa que mesclava o próprio rosto com um mapa do Reino Unido, tudo precisou ser refeito. Depois de um breve retorno aos estúdios no mês de novembro, em que contou com o suporte de Ringo Starr, o material mais uma vez ficou em suspenso. Foi somente após o assinato de John Lennon, em dezembro do mesmo ano, que Harrison voltou a trabalhar no disco. Vem desse período de forte comoção o estímulo para All Those Years Ago, faixa que não apenas foi adaptada para homenagear Lennon, como contou com a bateria de Starr e as vozes de Paul e Linda McCartney e foi apontada pela imprensa da época como uma de suas melhores composições em anos. Apesar dos esforços do artista, o que se percebe é a entrega de uma obra musicalmente confusa e que foi praticamente ignorada pelo público após o lançamento do segundo single, Teardrops.


#9. Wonderwall Music
(1968, Apple)

Mesmo que Wonderwall Music (1968) não fosse pensado como parte da trilha sonora do filme homônimo dirigido por Joe Massot, difícil pensar que George Harrison seguiria um caminho diferente ao investir no primeiro registro em carreira solo. Desde o intenso contato com a cultura indiana e a forte relação com o hinduísmo na segunda metade dos anos 1960, o cantor e compositor britânico parecia cada vez mais interessado pelos ritmos, instrumentos e elementos da música produzida na Ásia Meridional. E é exatamente isso que se percebe nas 19 faixas da versão original do disco. Um delirante exercício criativo que deixa a voz em segundo plano para combinar diferentes componentes que vão da música clássica indiana ao experimentalismo psicodélico que orientava as criações dos Beatles no período em que o material foi produzido. Era o princípio de um dos períodos mais inventivos (e loucos) do compositor inglês.


#8. Dark Horse
(1974, Apple)

Concebido durante um período de forte instabilidade emocional, com George Harrison tendo de lidar com o processo de separação de sua primeira esposa, Pattie Boyd, Dark Horse (1974) é um álbum bastante divisivo. Marcado por uma série de similaridades em relação ao disco que o antecede, Living in the Material World (1973), o trabalho pouco avança criativamente, porém, apresenta algumas ideias no mínimo interessantes. Exemplo disso fica bastante evidente no flerte com o soul, em Far East Man, uma das melhores canções do disco. A própria busca do artista por uma sonoridade mais pop, como em Ding Dong, Ding Dong, é outro elemento que chama bastante a atenção do ouvinte. Ainda assim, lançado no meio de uma turnê turbulenta com Ravi Shankar pelos Estados Unidos, com Harrison tendo a voz prejudicada por uma laringite, o registro acabou não agradando crítica e público, passando muitas vezes despercebido dentro da discografia do músico inglês. 


#7. Extra Texture (Read All About It)
(1975, Apple)

Depois do fracasso em torno de Dark Horse (1974), a expectativa era de que George Harrison regressasse ao mesmo território criativo explorado em All Things Must Pass (1970). Entretanto, o cantor e compositor britânico decidiu seguir a mesma trilha “americana” que vinha sendo explorada desde Living in the Material World (1973). Não por acaso, ao investir no sexto álbum de estúdio da carreira, Extra Texture (Read All About It) (1975), o músico registrou parte expressiva da obra no A&M Studios, em Los Angeles, estreitando laços com diferentes nomes da cena estadunidense. A diferença em relação ao disco anterior está na relação de equilíbrio entre o rock, o soul e a música pop. Esse maior comprometimento por parte artista não apenas resultou na entrega de boas composições, caso de This Guitar (Can’t Keep from Crying), You e Can’t Stop Thinking About You, inspirada na ex-esposa, Pattie Boyd, como alcançou a marca de meio milhão de cópias vendidas. Harrison estava de volta aos trilhos. 


Menção Honrosa: Live In Japan
(1992, Dark Horse)

Desde 1974, durante a turbulenta passagem pelos Estados Unidos, que George Harrison não se propunha a realizar uma grande turnê. Entretanto, no final de 1991, convencido pelo amigo Eric Clapton, o músico decidiu se aventurar em uma série de apresentações ao vivo pelo Japão. O resultado desse processo está na entrega do bem-resolvido Live In Japan (1992), registro em que passeia por algumas de suas principais composições em carreira solo, como My Sweet Lord, Isn’t It a Pity, Give Me Love (Give Me Peace on Earth) e What Is Life, mas que a todo momento abre passagem para o resgate de alguns dos principais sucessos dos Beatles. Do momento em que tem início, em I Want to Tell You, passando por Taxman, Something, Here Comes the Sun e a catártica interpretação de While My Guitar Gently Weeps, com Clapton na guitarra, não são poucos os momentos em que o artista estreita laços com o próprio passado. Primeiro registro ao vivo desde o premiado The Concert for Bangladesh (1971), esse também seria o último trabalho lançado por Harrison em vida.    


#6. Thirty Three & ⅓
(1976, Dark Horse)

Quem ouve as composições de Thirty Three & ⅓ (1976), sétimo álbum de George Harrison em carreira solo, dificilmente poderia imaginar que o artista vivia um de seus períodos mais instáveis. Enquanto as canções destacam o domínio técnico e sempre minucioso processo de criação do músico inglês, Harrison se afundava no consumo de cocaína e uso excessivo de álcool que o levou a contrair hepatite, interrompendo as gravações do disco. Depois de um tratamento médico e diferentes sessões de acupuntura, o artista se restabeleceu e regressou ao estúdio onde produziu algumas de suas melhores canções em anos. Do pop descompromissado de Crackerbox Palace, ao romantismo de Beautiful Girl, inspirada por sua futura esposa, Olivia Arias, sobram momentos em que o compositor demonstra todo seu domínio criativo. O destaque acaba ficando por conta da pegajosa This Song, música que ainda conta com vozes do humorista Eric Idle, do Monty Python, que dirigiu uma série de esquetes cômicas que ajudaram na divulgação do álbum.


#5. George Harrison
(1979, Dark Horse)

Passada a divulgação Thirty Three & ⅓ (1976) e a oficialização do divórcio de sua primeira esposa, Pattie Boyd, que o deixou para ficar com o amigo, o guitarrista Eric Clapton, George Harrison finalmente teve um período de estabilidade. Não por acaso, o músico passou o ano de 1977 viajando pelo Havaí, virou um espectador frequente no campeonato de Fórmula 1, casou-se com Olivia Arias e viu nascer o primeiro filho, Dhani Harrison. Toda essa movimentação positiva resultou na entrega de um registro que conclui com excelência o trabalho do artista na primeira década em carreira solo. Autointitulado, o álbum de dez faixas traz de volta parte dos temas acústicos de All Things Must Pass (1970), porém, preservando a relação com o rock que dividiu opiniões em Dark Horse (1974) e Extra Texture (Read All About It) (1975). No repertório, canções como a radiante Blow Away e Love Comes to Everyone que mais uma vez destacam o lirismo otimista de Harrison, como um fechamento sorridente para a jornada emocional iniciada anos antes pelo artista.


#4. Living in the Material World
(1973, Dark Horse)

Quarto trabalho de estúdio de George Harrison em carreira solo, Living in the Material World (1973) é uma manifestação da forte espiritualidade e dos temas místicos que há muito pareciam orientar as criações do artista inglês. Entregue ao público após o sucesso em torno de All Things Must Pass (1970) e o premiado espetáculo ao vivo The Concert for Bangladesh (1971), o disco de onze faixas soa como uma obra talvez enxuta quando próxima dos registros que o antecedem, mas não menos interessantes. Com Give Me Love (Give Me Peace on Earth) como carro-chefe, o trabalho ainda reserva uma série de boas composições, caso da balada Be Here Now, The Light That Has Lighted the World, Don’t Let Me Wait Too Long e a própria faixa-título do disco. Era o princípio de uma fase bastante produtiva que viria a orientar as criações de Harrison até o início da década de 1980.


#3. Brainwashed
(2002, Dark Horse / EMI / Parlophone)

Com a boa repercussão em torno de Cloud Nine (1987), George Harrison começou a investir em um novo álbum logo no ano seguinte ao lançamento do disco. Porém, com a formação do Traveling Wilburys, o projeto multimídia The Beatles Anthology e outros problemas pessoais, como o violento ataque cometido por um invasor em sua casa, postergaram a gravação do material. Foi somente depois de perceber que o câncer de pulmão que vinha lutando desde a década de 1990 havia se espalhado para o cérebro que Harrison decidiu voltar todos os seus esforços para a finalização do álbum. O músico viria a falecer em novembro de 2001, mas seu filho, Dhani, e o colaborador de longa data, o produtor Jeff Lynne, deram conta de finalizar o registro a partir de orientações deixadas pelo artista. Dessa forma, mais de um ano após a morte do cantor, vinha ao mundo Brainwashed (2002), obra marcada pela atmosfera soturna, mas que trouxe preciosidades como Stuck Inside a Cloud, Any Road e demais composições que, mais uma vez, serviram para evidenciar a força criativa e entrega do compositor britânico.       


#2. Cloud Nine
(1987, Dark Horse)

O sorriso estampado na imagem de capa de Cloud Nine (1987) ajuda a entender o entusiasmo de George Harrison durante a produção do 11º álbum em carreira solo. Depois de um período conturbado no início dos anos 1980, em que teve dificuldade de se adaptar ao mercado, o músico focou na carreira como produtor de cinema e se distanciou dos estúdios. Entretanto, depois de um contato com Jeff Lynne, do grupo Electric Light Orchestra, Harrison demonstrou interesse em investir na produção de um novo disco de inéditas, recrutando o instrumentista para atuar como coprodutor da obra. Entusiasmado e rodeado por nomes como Eric Clapton, Ringo Starr, Gary Wright e Elton John, o artista se reveza na construção de faixas como as enérgicas This Is Love, When We Was Fab e Got My Mind Set on You, essa última, uma releitura para a canção de Rudy Clark originalmente revelada no início dos anos 1960, mas que logo alcançou o topo das principais paradas de sucesso. Era como um sopro de novidade para Harrison que, no ano seguinte, ainda uniria forças com Lynne, Bob Dylan, Tom Petty e Roy Orbison para dar vida ao paralelo Traveling Wilburys.


Menção Honrosa: The Concert For Bangladesh
(1971, Apple)

Muito antes do Live Aid (1985) e outros eventos envolvendo grandes nomes da música em prol da arrecadação de dinheiro para causas sociais, George Harrison organizou em 1971 o Concerto Para Bangladeshe. Trata-se de uma apresentação ao vivo no Madison Square Garden, em Nova Iorque, para ajudar refugiados bengaleses desabrigados durante a Guerra de Libertação de Bangladesh. Acompanhado por nomes como Bob Dylan, Ravi Shankar, Eric Clapton, Ali Akbar Khan, Ringo Starr, Billy Preston e Leon Russell, o artista apresenta desde canções instrumentais, como Bangla Dhun, de Shankar, até composições extraídas do recém-lançado All Things Must Pass (1970). Recebido de forma positiva pelo público e crítica, o trabalho alcançou o topo das paradas de sucessos em diferentes países, conquistou o título de Álbum do Ano no Prêmio Grammy de 1973 e, até hoje, continua a beneficiar beneficiar crianças do Nordeste Africano por meio do Fundo George Harrison para a UNICEF.


#1. All Things Must Pass
(1970, Apple)

All Things Must Pass é um desses discos essenciais da década de 1970. Primeiro álbum de George Harrison em carreira solo desde o fim das atividades dos Beatles, o trabalho conta com um vasto acervo de canções que vinham sendo desenvolvidas pelo artista desde 1968. O resultado desse intenso processo de composição está na entrega de uma obra extensa, porém, fascinante durante toda sua execução. Para a realização do material, que foi apresentado como um disco triplo, Harrison contou com o suporte do produtor Phil Spector, além de nomes como Eric Clapton e até mesmo os antigos companheiros de banda, os músicos Ringo Star e John Lennon. A própria relação com Bob Dylan, com quem havia iniciado uma amizade durante o festival de Woodstock, foi essencial para o desenvolvimento da obra que revelou algumas das melhores canções do multi-instrumentista, como a transcendental My Sweet Lord, Isn’t It a Pity e What’s Life. O disco conta ainda com uma seção inteira, intitulada “Apple Jam”, dedicada aos improvisos de Harrison e seus parceiros de estúdio. É como uma colorida combinação de ideias, ritmos e diferentes temáticas que hoje reverberam de forma tão impactante quanto na época em que o trabalho foi apresentado.


Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.

Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.