Arnaldo Matos, o homem que ficou na mesma

Arnaldo Matos e o seu partido, o MRPP, tiveram um papel decisivo na campanha contra a mobilização de soldados para as colónias, o que acelerou a descolonização.

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Pedro Cunha
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Luís Ramos

Quando o MRPP é proibido de concorrer às eleições para a Assembleia Constituinte, em 1975, um dos motivos são as “perturbações da ordem pública, com prejuízo para a própria disciplina das Forças Armadas”. A “disciplina” era a mobilização de tropas para as então colónias, que prosseguiram depois do 25 de Abril. O MRPP foi o partido que mais importância teve no processo que ficaria no imaginário colectivo com a palavra de ordem “nem mais um soldado para as colónias”. O texto Nem mais um embarque, um apelo “à deserção em massa”, escrito por José Luís Saldanha Sanches para o jornal oficial do MRPP, o Luta Popular, levaria o autor a ser o primeiro preso político do pós-25 de Abril, prisão feita pelo Copcon, o Comando Operacional do Continente, criado por António de Spínola e comandado por Otelo Saraiva de Carvalho, que tinha o dever de fazer cumprir as “regras” da Revolução. Outros militantes do MRPP, incluindo Arnaldo Matos, seriam presos.

O mote de “nem mais um embarque” foi desencadeado pelo MRPP logo a seguir à revolução. Logo na noite de 3 para 4 de Maio de 1974, um grupo de militantes do MRPP invade o aeroporto de Figo Maduro para boicotar o primeiro embarque de tropas para as colónias (no caso, Angola) previsto a seguir ao 25 de Abril. Tem algum sucesso. Alguns soldados não embarcam. “Mais de 50 foram chupados pelos populares”, diz o major Zilhão, do serviço de informações das Forças Armadas, citado pelo O Século. Apesar de “chupados”, dos 50 só não embarcam dez. Mas o movimento liderado pelo MRPP foi imparável e muitos historiadores aceitam que as manifestações de rua contribuíram para o acelerar da descolonização.

Quando após 30 anos de prolongadíssimo silêncio Arnaldo Matos regressa ao espaço público – através de instrumentos modernos como o Twitter e o jornal online Luta Popular –, aparece com uma linguagem que surpreende quem esqueceu, ou desconheceu, o que dizia Arnaldo Matos nos anos quentes da Revolução. O hiato encontrou-o na mesma enquanto à sua volta tudo tinha mudado. O 25 de Abril tinha sido – segundo o comunicado oficial do MRPP à altura dos acontecimentos – “uma manobra da burguesia”, promovido “por um sector da oficialagem do exército colonial-fascista” e desencadeado “contra a camarilha marcelista”.

“A Constituinte é um covil de parasitas”, dizia o então líder do MRPP em Fevereiro de 1976, definindo as primeiras eleições legislativas pós-25 de Abril como “uma manobra da burguesia para obter do povo um aval, o cheque em branco de que falava a camarilha marcelista, para, no dia seguinte à abertura do novo Parlamento, impor aos operários e aos camponeses a mais desenfreada das explorações e a mais impiedosa das repressões”. A Constituinte era “um moinho de palavras” que servia para “aplaudir a quatro patas os conluios celebrados, fora da Constituinte, entre as diversas facções da classe dominante”.

O PS era “o porta-voz do imperialismo americano”, mas isso não impediu que tivesse acontecido um encontro secreto entre Mário Soares e o líder do MRPP, que decidiu continuar na “clandestinidade”​, mesmo depois do 25 de Abril . A história é contada por Vítor Ramalho, amigo de Soares até à morte, no seu livro Crónica de uma amizade fixe. Soares e Arnaldo Matos tinham uma coisa em comum: para ambos, em 1975, o inimigo era o PCP. Um grupo de militantes do MRPP vem buscar Mário Soares mas exige-lhe que ponha uma venda nos olhos para o secretário-geral do PS não perceber para que lugar estava a ser levado. Soares lá aceita pôr a venda. Quando chegam à casa onde Arnaldo Matos vivia, é tirada a venda a Mário Soares. Só que rapidamente o secretário-geral socialista fica a saber onde estava: uma cidadã vê-o chegar e diz: “Olha o Mário Soares aqui na Parede”.

Marcelo: “Defensor ardente da liberdade”

O Presidente da República recordou nesta sexta-feira Arnaldo Matos como “um defensor ardente da liberdade”, dizendo que “ contribuiu decisivamente para enriquecer o debate democrático e para o pluralismo de opinião no seio da sociedade portuguesa”. O passado é um país distante, claro. A 18 de Março de 1975, o MRPP de Arnaldo Matos defendia “o desmantelamento imediato da GNR, da PSP, do CDS e do PDC” e o “julgamento popular e execução pública dos fascistas, PIDES, e dos responsáveis pelo golpe [de 11 de Março]”.

Arnaldo Matias de Matos nasceu em Santa Cruz, Madeira, a 24 de Fevereiro de 1939 — estava a dois dias de fazer 80 anos, e os seus amigos e familiares tinham preparado uma homenagem para essa data — e continuava ligado ao partido que fundou, apesar de já não desempenhar qualquer cargo. Sofria de doença pulmonar obstrutiva crónica provocada pelo tabaco, embora já tivesse deixado de fumar.

O MRPP foi muito activo antes do 25 de Abril de 1974, especialmente entre estudantes e jovens operários de Lisboa, e sofreu a repressão das forças policiais, reivindicando como mártir José Ribeiro dos Santos, um estudante assassinado pela polícia durante uma reunião de alunos da academia de Lisboa no então Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (ISCEF) em 12 de Outubro de 1972.

No pós-25 de Abril, começou a ser conhecido por ser “delegado do Comité Lenine”, que era o Comité Central do MRPP, movimento que se legalizou em Fevereiro de 1975 e se transformou, em Dezembro de 1976, no Partido Comunista dos Trabalhadores Portugueses – Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado, o PCTP/MRPP. Logo após a legalização do movimento, em 18 de Fevereiro de 1975, Arnaldo Matos foi preso pela primeira vez em Mirandela, pelo Copcon, e foi a partir dessa data que todo o país ficou a saber o seu nome. “Libertação imediata do camarada Arnaldo Matos”, gritaram então alguns militantes e simpatizantes no Rossio, em Lisboa.

“Nesses meses, de um Verão quente que começa antes do Verão e que se prolonga Outono dentro, o MRPP é a força hegemónica da extrema-esquerda”, escreve o jornalista Miguel Marujo, citando um dos fundadores, Fernando Rosas, na obra Morte aos traidores! A história improvável do mais controverso partido político português, lançado em Novembro pela Matéria-Prima edições.

Arnaldo Matos esteve afastado do MRPP entre 1982 e 2015. Nas raras entrevistas que foi dando, mostra a sua desilusão com o partido que fundara e o triunfo da “contra-revolução”. António Garcia Pereira substitui-o até 2015, altura em que sai em ruptura com Arnaldo Matos com acusações mútuas de “traição”.

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