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Fragoso, S. ‘Espaço, Ciberespaço, Hiperespaço’, Textos de Comunicação e Cultura, n. 42, UFBa, 2000, p. 105-113. Espaço, ciberespaço, hiperespaço Suely Fragoso UNISINOS RS O advento e desenvolvimento das tecnologias digitais vem provocando aceleradas modificações não apenas na organização social, econômica e política mundial mas também - e talvez principalmente - nos modos de perceber, pensar e agir sobre o mundo dito 'real' e a própria condição humana. Evidentemente esta consideração não implica que o curso da transformação tecnológica e a natureza das tecnologias sejam determinantes das formas da experiência e da ação dos sujeitos e grupos socioculturais, mas apenas que exista um diálogo entre as práticas tecnológicas e a percepção, o raciocínio e a ação, individuais e coletivos. As estruturas socioculturais e econômicas influenciam o desenvolvimento tecnológico ao mesmo tempo em que sofrem seus efeitos. Incluídos nesta concepção, também os modos de ser e pensar sobre nós mesmos e sobre o mundo influenciam e são influenciados pela disponibilidade e configuração de novas tecnologias. Dentre as várias noções que o advento e o desenvolvimento das tecnologias digitais de comunicação prometem afetar, destacam-se pela sua centralidade as questões do espaço e do tempo. Uma parcela significativa dos trabalhos dedicados a investigar o impacto das tecnologias digitais sobre a conceituação e a percepção do espaço e do tempo discute a potencial acentuação, no chamado 'ciberespaço', de distorções nas experiências do tempo e do espaço inauguradas por mídia anteriores. Exemplares desta tendência são os alertas sobre o potencial alienante da midiatização digital de um número cada vez maior de atividades. Diante de uma 'realidade virtual' que dê continuidade às formas de representação praticadas por exemplo no cinema e na televisão, as fronteiras entre o real e o imaginário podem assumir caráter cada vez mais difuso. Também as noções de proximidade e distância, duramente abaladas por tecnologias de transmissão de informação anteriores, poderiam tornar-se ainda menos significativas em função da extrema aceleração viabilizada pelas tecnologias digitais de comunicação. Um fórum privilegiado para a abordagem dos possíveis reflexos e desdobramentos do desenvolvimento dos sistemas de realidade virtual e das redes digitais de comunicação sobre os estatutos do espaço e do tempo é o chamado 'ciberespaço' - aqui entendido como o conjunto de informações codificadas binariamente que transita em circuitos digitais e redes de transmissão. A partir das intricadas relações estabelecidas nesse sistema, emergem as referências a um 'espaço informacional', indicando o caráter teórico que embasa a concepção da espacialidade do ciberespaço. A despeito da aparente falta de correspondência entre este 1 1 Fragoso, S. ‘Espaço, Ciberespaço, Hiperespaço’, Textos de Comunicação e Cultura, n. 42, UFBa, 2000, p. 105-113. espaço informacional e o espaço físico que chamamos 'real', são comuns as referências à interação, navegação, existência no ciberespaço. A abundância de metáforas que descrevem a experiência virtual em termos da espacialidade do mundo 'real' e a facilidade com que essas mesmas metáforas são incorporadas à cultura apontam para a possibilidade de existência de algum paralelismo entre a espacialidade de nossa experiência cotidiana e a percepção que temos da abstração a que denominamos ciberspaço. Diante das 'Cidades de Bits' por onde navegam 'cidadãos-da-rede', das HomePages divididas em quarto, sala e cozinha (Sørenseen, B., s. d., s. p.), dos domínios e Sites, emerge a questão: existe espaço no ciberespaço? Os caminhos que podem conduzir à compreensão das implicações desta pergunta começam com uma breve investigação dos modos como concebemos e experienciamos o espaço que chamamos 'real'. Espaço Antes de declarar a não-espacialidade da experiência no ciberespaço em função do teor abstrato de sua concepção e manifestações, é preciso recordar que também o espaço dito 'real' é apreendido e concebido sob influência das peculiaridades fisiológico-anatômicas do sujeito da percepção, e das circuntâncias da cultura e organização social e econômica em que se encontra inserido o mesmo sujeito. Dois modos fundamentais de conceber o espaço 'real' têm estado presentes no pensamento ocidental pelo menos desde a Antiguidade Clássica, alternando-se quanto à preponderância de sua aceitação junto à comunidade científica e convergindo para formar o que, nos dias atuais, corresponde à conceituação de espaço a partir da qual opera a maioria das pessoas. Estes conceitos podem ser genericamente identificados pelas expressões 'espaço absoluto' e 'espaço relacional', sendo o espaço absoluto um existente anterior e independente dos elementos que o ocupam, cujas características fundamentais seriam a homogeneidade e a infinitude, enquanto o espaço relativo emerge a partir das relações entre os objetos que o compõem. Sujeitos da cultura ocidental do final do século XX, concebemos o espaço no sentido absoluto, conforme os pressupostos teóricos com os quais operamos a maior parte do tempo (por exemplo a Física Newtoniana e a Geometria Euclideana). Percebemos o espaço, no entanto, a partir das relações que os elementos dentro de nosso campo de visão estabelecem entre si e com nosso corpo. Num exame da articulação da espacialidade a partir das práticas cotidianas, M. de Certeau verifica diferenças análogas entre a conceituação do espaço e a experiência espacial. A partir de uma diferenciação entre noções de lugar e espaço que correspondem respectivamente, grosso modo, ao que estamos chamando de espaço absoluto e experiência espacial, de Certeau verifica o dinamismo com que a experiência cotidiana organiza o espaço a partir das operações que o orientam, circunstanciam e temporalizam (de Certeau, p. 201-203). Concebemos o espaço absoluto, mas nossa experiência parece ser, em grande parte, mais afinada com a noção de espaço relacional. O espaço percebido, relacional, não se identifica com o espaço Euclideano, absoluto. Por mais que consideremos um bom modelo, "a Geometria Euclideana não é mais que o 2 2 Fragoso, S. ‘Espaço, Ciberespaço, Hiperespaço’, Textos de Comunicação e Cultura, n. 42, UFBa, 2000, p. 105-113. resultado de um exercício de abstração matemática" (Gray, 1996, p. 651). Nem mesmo a tridimensionalidade conformação tridimensional com que apreendemos as formas do mundo de nossa vivência cotidiana, corresponde direta ou necessariamente a uma realidade espacial objetiva. Dois exemplos podem ilustrar esta questão. Em primeiro lugar, a capacidade de descrição matemática de fenômenos naturais a partir do estabelecimento da Geometria Fractal resulta, em grande parte, da inclusão da possibilidade de trabalhar com dimensões fracionárias ou irracionais em oposição às dimensões inteiras Euclideanas. Na Geometria Euclideana, um ponto tem dimensão zero, uma linha tem dimensão 1 (comprimento), uma superfície tem dimensão 2 (comprimento e largura) e um volume tem dimensão 3 (comprimento, largura e altura). Já de acordo com a Geometria Fractal, "pode-se dizer que certas curvas planas muito irregulares têm 'dimensão fractal' entre 1 e 2, e que certas superfícies muito rugosas e onduladas têm 'dimensão fractal' entre 2 e 3..." (Mandelbrot, 1984, p. 6). Também a possibilidade de concepção de elementos com dimensões inteiras superiores a três desafia o paradigma Euclideano. Derivando de formulações matemáticas teóricas, a hipótese de que habitamos um espaço de quatro ou mais dimensões foi cogitada como a possível solução de uma série de impasses nos modelos físicos e matemáticos do século XIX, e encontra suporte por exemplo nas equações e experimentos de A. Einstein (Duval, 1999, s. p.). Para alguns autores, é possível que o fenômeno que denominamos 'tempo' não seja mais que a forma limitada como nossos sentidos podem apreender eventos que acontecem numa quarta dimensão exclusivamente espacial (Sainte-Lagüe, 1962, Duval, 1999, s. p.). Para contornar os limites à percepção da quarta dimensão espacial eventualmente impostos por nossa conformação anatômico-fisiológica, vários trabalhos propõem explicações que partem de analogias com seres hipotéticos os quais, habitando um espaço tridimensional, pudessem apreender apenas a existência de duas dimensões Euclideanas. Incapacitados de perceber relações de profundidade, estes seres planos não teriam meio de experienciar a terceira dimensão a menos que um elemento tridimensional 'atravessasse' seu mundo bidimensional. Um exemplo clássico da experiência destes seres bidimensionais é o chamado 'fenômeno laranja', ou seja, a queda de uma laranja através do plano por eles habitado. Para os seres planos, o fenômeno acontece da seguinte forma: inicialmente surge uma pequena mancha amarela, que ao se expandir revela um círculo interior de cor menos intensa, recortado por raios brancos. Os círculos concêntricos se expandem até certo limite, começam a diminuir de tamanho até que reste novamente apenas a circunferência amarela, que por fim também diminui e desaparece completamente (Saint-Lagüe, 1962). Literalmente, trata-se de uma representação bidimensional de um objeto em movimento no espaço tridimensional. Para aqueles que postulam a viabilidade da existência de uma quarta dimensão espacial, um fenômeno de percepção análogo caracterizaria nossa experiência trimensional de um objeto de quatro dimensões que 'atravessasse' o espaço que chamamos 'real'. Tudo o que poderíamos ver seriam 'fatias' tridimensionais desse objeto, que estivessem localizadas exatamente em nosso universo perceptivo (Duval, 1999, s. p.). Aos espaços com mais que três dimensões dá-se o nome de 'hiperespaço'. Hiperespaços e elementos hiperespaciais, como por exemplo os hipercubos1, podem ser 1 Hipercubos são figuras geométricas n-dimensionais construídas de forma análoga a um cubo tridimensional no 3 3 Fragoso, S. ‘Espaço, Ciberespaço, Hiperespaço’, Textos de Comunicação e Cultura, n. 42, UFBa, 2000, p. 105-113. representados visualmente em duas ou três dimensões, mas a mente humana tem dificuldades para operar em sistemas espaciais deste tipo. A apreensão em quatro ou mais dimensões é, no entanto, fundamental para o estudo de sistemas complexos, nos quais as características de cada elemento precisem ser representadas por quatro, cinco ou mais variáveis. A expressão hiperespaço é também utilizada com relativa frequência em relação aos sistemas baseados em hipertexto2 de um modo geral, e ao ciberespaço em particular. De modo geral, este tipo de apropriação do termo hiperespaço não vem acompanhado de considerações sobre o estabelecimento de um espaço multidimensional a partir dos hiperlinks. Mesmo T. Nelson, que teria cunhado o termo hipertexto na década de 1960, apenas indiretamente relaciona a noção matemática de hiperespaço ao 'espaço informacional' construído com hiperlinks : "[d]e acordo com Nelson, a maior influência veio do vocabulário das matemáticas, em que o prefixo 'hiper' significa 'extendido e generalizado'" (Bardini, 1997, s. p.). A complexidade do espaço informacional possível de construir com sistemas de hipertexto e hipermídia aponta, de qualquer modo, para uma constituição verdadeiramente hiperespacial. Ciberespaço O neologismo 'ciberespaço' (cyberspace) é atribuído a W. Gibson, que o teria cunhado em Neuromancer (1984): Ciberespaço. Uma alucinação consensual experimentada diariamente por milhões de operadores em cada nação, por crianças sendo ensinadas conceitors matemáticos . . . . Uma representação gráfica dos dados abstraídos dos bancos de cada computador no sistema humano. Inconcebível complexidade (Gibson, 1993, p. 67). Apropriada para denominar o conjunto das informações que transitam nos servidores e terminais conectados à Internet, a expressão ciberespaço popularizou-se com a rápida expansão do número de usuários da rede na década de 1990. Para grande parte dos usuários não-especialistas, a Internet corresponde à somatória de correio eletrônico e World Wide Web (WWW ou simplesmente Web). A WWW é resultado da associação do conceito de hipertexto ao projeto de desenvolvimento de um sistema de domínio público que viabilizasse a transferência de arquivos entre computadores operando a partir de sistemas operacionais incompatíveis (Berners-Lee, 1996, s.p.). Apoiada sobre a convergência de vários fatores tecnológicos, políticos, econômicos e culturais, a utilização da Web aumentou vertiginosamente em poucos anos, introduzindo para milhões de pessoas ao espaço Euclideano. 2 A expressão hipertexto designa, no contexto deste trabalho, o estabelecimento de conexões persistentes (links) entre seleções (âncoras) em arquivos digitais a serem enunciados sob a forma de texto. O usuário pode navegar através das informações selecionando e seguindo estes links. Hipermídia é uma extensão do conceito acima visando incluir informação não necessariamente textual, tais como as representações imagéticas, animação e vídeo. 4 4 Fragoso, S. ‘Espaço, Ciberespaço, Hiperespaço’, Textos de Comunicação e Cultura, n. 42, UFBa, 2000, p. 105-113. redor do mundo as práticas da comunicação mediada por computador, a hipermídia e o conceito de 'ciberespaço'. Correspondendo à fração do ciberespaço com a qual se encontram mais familiarizados os usuários não-especialistas, e na qual alguns autores vislumbram a materialização - ou, neste caso, virtualização para além da mera potencialidade - do ciberespaço conforme descrito por Gibson (Sørenseen, s. d., s. p.), a World Wide Web passou a ser genericamente identificada como 'o ciberespaço'. A leitura completa de Neuromancer revela especificidades da concepção ficcional do ciberespaço que não estão presentes na passagem inicial acima reproduzida, e que distanciam o conceito em Gibson da presente configuração da World Wide Web. Ao longo da trilogia ciberespacial de Gibson3 fica clara a vinculação entre a expressão 'representação gráfica dos dados' e uma intenção de realismo representacional mais afinada com o paradigma de desenvolvimento dos sistemas de 'realidade virtual' que com a experiência atual de navegação na WWW. Na obra de Gibson, a estrutura e a visualização do ciberespaço são norteadas por correspondências bastante diretas com a arquitetura, a organização econômica, social e política e a geografia do mundo 'real': 'Merda', disse o construto, 'aquelas coisas são o prédio da RCA. Você conhece o velho prédio da RCA? O programa Kuan mergulhou pelas dezenas de idênticas torres de dados, cada uma uma réplica em neon azul do arranha-céu de Manhattan. Você já viu a resolução assim alta? (Gibson, 199?, p. 303) Com certeza. Eu dei linha reta. Primeira vez. Eu estava só olhando, imerso bem alto, lá pelo setor do comércio pesado no Rio. Grandes negócios, multinacionais, o Governo do Brasil aceso como uma árvore de Natal (Gibson, 1993, p. 303) O Wig, no primeiro calor da juventude e glória, tinha se arrebentado num passe através dos setores pouco ocupados da matriz que representam aquelas áreas geográficas que eram conhecidas como o Terceiro Mundo (Gibson, 1993b, p. 172) A intenção de reprodução ou criação de 'mundos virtuais realistas' não é estranha às propostas para o futuro da World Wide Web. A partir do desenvolvimento de estratégias para a incorporação de modelos digitais tridimensionais a Web Sites, dentre as quais a linguagem VRML4 é ainda a mais bem sucedida, um número cada vez maior de modelos de existentes do mundo dito 'real' e simulações de uma determinada versão de nossa experiência cotidiana do 3 Neuromancer (1984), Count Zero (1987) e Mona Lisa Overdrive (1988) 4 Virtual Reality Modelling Language. 5 5 Fragoso, S. ‘Espaço, Ciberespaço, Hiperespaço’, Textos de Comunicação e Cultura, n. 42, UFBa, 2000, p. 105-113. espaço vem sendo publicado na WWW5. Assim como os paralelismos entre a geografia e a arquitetura do mundo físico e a distribuiçãoe aparência de volumes no ciberespaço propostos na obra de Gibson, a inclusão de modelos tridimensionais na Web poderia ser compreendida como um esforço para a intensificação do caráter espacial da WWW. A percepção da espacialidade do ciberespaço, no entanto, independe da inclusão de modelos tridimensionais à World Wide Web. Assim como apreendemos a espacialidade do mundo físico a partir da percepção das relações que os vários elementos que o povoam estabelecem entre si, também o espaço da Web ser revela para os usuários a partir da identificação das relações estabelecidas entre as várias 'páginas'6 - a partir dos links. De fato, uma vez que emerge das relações estabelecidas entre os vários elementos que o compõem - no caso da World Wide Web os vários Web Sites - o ciberespaço seria, por definição, um espaço do tipo relacional. Pelo menos no atual momento tecnológico apenas uma única 'página' pode ser enunciada por vez na tela bidimensional típica dos microcomputadores pessoais. Deste modo é possível experienciar, mas não visualizar, as relações que as diferentes páginas da Web mantém umas com as outras. Tentativas de desenvolvimento de formas unificadoras de representação da espacialidade de frações da WWW esbarram na complexidade espacial das relações a partir das quais se estrutura o ciberspaço. Em busca da solução para este problema, pesquisadores da área de ciências da computação procuram desenvolver mapeamentos sintetizadores cada vez mais elaborados mapas dinâmicos, tridimensionais, hiperbólicos, etc. Revisando um trabalho de C. Linde e W. Labour, M. de Certeau verifica como a idéia de mapa está ligada à cientificização do discurso, enquanto a construção da espacialidade a partir de descrições de percurso corresponde à experiência cotidiana, "à 'cultura ordinária'" da percepção espacial (de Certeau, pp. 203-205). O percurso é outra marca da constituição relacional da espacialidade experimentada na World Wide Web, pois do ponto de vista do sujeito que navega a transição de uma para outra página é percebida como um deslocamento do ou no ciberespaço. O usuário seleciona o link que inicia a transição, e portanto controla a partida em direção a outra página. Também a demora na transmissão dos dados, característica do atual estágio de desenvolvimento tecnológico, estende por um intervalo de tempo mais que perceptível a transição de uma para outra página, enfatizando temporalmente os percursos entre as páginas (Sørenseen, s. d., s. p.). Os 'caminhos' que ligam os diferentes elementos que constituem a World Wide Web podem permanecer invisíveis para o olhar unificador que mapeia, mas são percebidos pelo sujeito que navega o ciberespaço e apreende sua espacialidade não apenas pelo que vê, mas também em função do 'percurso' que realiza entre 5 Alguns exemplos seriam G. Quintieri, 1999, Universal Media "Seaside" Demo, disponível on-line a partir de http://www.livinglinks.com/UniversalMedia/demos/seaside/ [jan 2000]; Canoma Software, VRML Example, disponível on-line em http://www.canoma.com/vrml/latest/hamilton/scene.html [jan 2000] e El País, Museo Virtual De Artes El Pais; 1997, disponível on-line a partir de http://diarioelpais.com/muva/# [jan 2000]. 6 A expressão 'página' da World Wide Web é adotada significando cada documento identificado individualmente pelos Browsers de acesso à Web. As limitações da metáfora serão discutidas mais adiante. 6 6 Fragoso, S. ‘Espaço, Ciberespaço, Hiperespaço’, Textos de Comunicação e Cultura, n. 42, UFBa, 2000, p. 105-113. uma e outra instância visualizável. Milhões de usuários 'navegam' pela World Wide Web todos os dias, e ao final de cada sessão no ciberespaço levam consigo uma impressão da estrutura espacial sinalizada pelos caminhos percorridos. A analogia com a percepção da espacialidade urbana é bastante clara: também a configuração do espaço urbano emerge de travessias durante as quais identificam-se as relações que os elementos da cidade estabelecem entre si. A experiência do espaço urbano é relacional e em grande parte restrita à visualização de superfícies (Salingaros, 1999, s.p.), e a capacidade orientar-se na cidade aponta para a percepção de sua espacialidade sem implicar, necessariamente, a capacidade de mapear os caminhos possíveis. Estes e outros paralelos entre a experiência de navegação na WWW e a percepção cotidiana da espacialidade urbana explicam a abundância de metáforas de cunho arquitetônico e urbanístico na descrição e análise da experiência da Web: 'cidade de bits', 'agora virtual', telepolis, etc. Em 1996, J. D. Bolter identificou ainda outras características comuns ao espaço urbano e ao ciberespaço, particularmente o caráter coletivo de sua instituição, a heterogeneidade e os modos de apreensão dos dois fenômenos. Para Bolter, a cidade contemporânea é caracterizada por uma dualidade em que cada habitante persegue seus próprios interesses, e ainda assim as atividades de todos combinam para direcionar e tornar viva a cidade como um todo. O ciberespaço, ou pelo menos a Internet, possui esta qualidade. Talvez nenhuma outra metáfora disponível possa capturar como a da cidade a tensão através da qual a ação individual conduz a um senso coletivo de coerência (Bolter, 1996, s. p.) Da adoção da metáfora da cidade para a World Wide Web derivam neologismos que descrevem os sujeitos que navegam pelo ciberespaço a partir de referências à condição urbana. As 'cidades virtuais' são habitadas por netcitizens e ciberflâneurs. Estas e outras metáforas fortes, como as da navegação e do labirinto, têm o mérito de colocar em termos familiares configurações tecnológicas inéditas, como de resto também o fizeram em períodos anteriores expressões como 'carruagem sem cavalos' e 'rádio com imagens'. É preciso não esquecer, no entanto, que ao mesmo tempo em que criam imagens elucidativas as metáforas tendem a conformar a apreensão do elemento a que se referem às especificidades do conceito apropriado para a construção do sentido figurado. Por que encontramos (ciber)cidades num continente ou espaço que supomos novo? Seriam as cidades alguma novidade para a espécie humana? Por que encontramos figuras centenárias como flâneurs, situacionistas e urbanistas utópicos em um Novo Continente? A resposta é que - assim como quando da descoberta de cada novo continente - o que se pode descobrir é sempre o que já se conhece. (Marchant, 1997, s. p.) Hiperespaço Sem perder de vista o que as metáforas nos revelam sobre a experiência de navegação 7 7 Fragoso, S. ‘Espaço, Ciberespaço, Hiperespaço’, Textos de Comunicação e Cultura, n. 42, UFBa, 2000, p. 105-113. na World Wide Web, é preciso fazer um esforço para identificar também aquelas particularidades da espacialidade do ciberespaço que possam eventualmente ter permanecido obscurecidas pelas figuras de linguagem. Em contraposição à experiência urbana, por exemplo, a diversidade dos vários elementos que podem compor páginas da WWW é homogeneizada espacialmente pela enunciação na tela plana do monitor. Páginas que contém textos, desenhos, gráficos e fotografias são traduções para o meio eletrônico de composições que poderiam ser realizadas em outros planos estáticos, por exemplo folhas de papel. Daí deriva, e aí se esgota, a metáfora da página. A enunciação de imagens em movimento, por exemplo animações ou sequências de vídeo digitalizadas solicitaria outra metáfora. Uma analogia possível, novamente de cunho arquitetônico, seria a da parede (possivelmente grafitada com desenhos e textos) na qual se projeta um filme ou que contém uma janela através da qual são vislumbrados eventos em desenvolvimento. A metáfora da parede grafitada não dá conta, no entanto, de possibilidades como a determinação pelo usuário da interrupção ou repetição dos 'filmes' ou 'eventos' virtuais que observa. Também páginas contendo modelos tridimensionais extrapolam as possibilidades da metáfora da parede com uma janela através da qual se vislumbra uma paisagem pois, apesar de estar 'do lado de cá' da parede, o usuário pode movimentar os elementos visualiza 'do outro lado' da janela. O ciberespaço se constitui a partir do entrecruzamento entre elementos dos mais variados tipos: 'páginas' estritamente bidimensionais; representações às quais é adicionada uma dimensão temporal a partir da inclusão de animações ou sequências digitalizadas de vídeo; representações interativas e em perspectiva de modelos tridimensionais, combinações de variadas formas de representação em uma única tela, etc. A percepção da espacialidade da World Wide Web se articula através da identificação dos percursos possíveis entre os diferentes tipos de representação. Preso 'do lado de cá' da tela, o usuário pode percorrer com os olhos a superfície na qual os diferentes elementos são enunciados, selecionar links e determinar, ainda que de forma bastante restrita, algumas coisas possíveis de acontecer 'do outro lado'. Cada vez que seleciona um link, no entanto, o usuário desloca o ciberespaço ou se desloca de modo a ficar diante da representação bidimensional de um elemento diferente. Mesmo que a passagem de uma página para outra aconteça muito rapidamente, a noção de continuidade que o usuário traz de sua experiência cotidiana conduz à inferência da existência de um espaço 'entre' as páginas no qual se dá o percurso. Diferentemente das experiências de travessia às cegas no dia-a-dia do mundo que chamamos 'real', por exemplo em elevadores ou veículos sem janelas, os percursos realizados na WWW configuram uma estrutura espacial que não necessariamente permite ao usuário prever os destinos de links semelhantes, ou os vários pontos de chegada disponíveis a partir de uma única página. A experiência de movimento, a inferência do espaço 'entre as páginas', aponta para uma estrutura espacial mais complexa do que aquela que o usuário experimenta diariamente. Percursos no ciberespaço são movimentos num espaço peculiar cujos elementos não se encontram distribuídos tridimensionalmente, e no qual os vários pontos de chegada podem ter dimensionalidades as mais variadas: a linearidade do texto, a bidimensionalidade das imagens planas, o dinamismo das animações, a tridimensionalidade dos modelos em VRML, etc. 8 8 Fragoso, S. ‘Espaço, Ciberespaço, Hiperespaço’, Textos de Comunicação e Cultura, n. 42, UFBa, 2000, p. 105-113. A semelhança entre a experiência de navegação no ciberespaço e um exemplo elaborado por Riemann para explicar a possibilidade de existência de mais de três dimensões espaciais é contundente. Como vários outros autores que abordaram este assunto, Riemann construiu seu exemplo a partir de hipotéticos 'seres planos', incapazes de perceber relações de profundidade, que habitariam um espaço tridimensional. Ao invés de imaginar um objeto tridimensional atravessando o mundo dos seres planos como no 'fenômeno laranja' anteriormente descrito, Riemann propôs a imagem de duas folhas de papel, cada uma delas representando um universo bidimensional distinto, que se tocam exatamente no local em que existe um pequeno corte em cada folha (Figura 1). Um 'ser plano' percorre a superfície de seu universo bidimensional até que chega à abertura em que as duas superfícies se encontram. Inadvertidamente, o 'ser plano' atravessa a abertura criada pelos cortes em contato, passando de seu universo bidimensional A para o outro universo bidimensional B. Enquanto para um observador capaz de perceber a terceira dimensão o ser plano simplesmente passou de uma superfície para outra, a criatura que não é capaz de conceber a profundidade, e portanto não dispõe de conceitos como em cima ou embaixo, está desorientada. Reconhece o fato de haver se deslocado espacialmente, mas não consegue compreender como teria ido parar em outro universo, diferente do seu. "Teoricamente, o ser passou 'através' de um espaço desconhecido; seu movimento gerou (ainda que momentaneamente) uma terceira dimensão num mundo 2D. Este espaço, a fissura paradoxalmente vazia entre as duas folhas de papel, só existe retrospectivamente" (Tolva, 1996, s. p.) e deriva da inferência de continuidade espacial a partir da viabilidade de realização da travessia. Figura 1: representação esquemática do 'ser plano' atravessando o Corte de Riemann (adaptado de Tolva, 1996, s. p.) Analogamente, a partir dos links que seleciona o usuário da Web atravessa fronteiras entre diferentes agrupamentos de informação, apreende o fato de haver efetuado movimento mas não consegue visualizar em que sentido ou direção o deslocamento aconteceu. Como o 'ser plano' que atravessa o Corte de Riemann inadvertidamente, o usuário da World Wide Web deliberadamente experiencia a múltipla dimensionalidade do espaço informacional, que unifica enquanto memória da experiência de navegação como um todo. A despeito de quaisquer possibilidades de que a espécie humana efetivamente habite um 9 9 Fragoso, S. ‘Espaço, Ciberespaço, Hiperespaço’, Textos de Comunicação e Cultura, n. 42, UFBa, 2000, p. 105-113. universo multidimensional, estando limitada à percepção de apenas três dimensões por sua configuração anatômico-fisiológica ou cultural, a apreensão da espacialidade hiperdimensional do ciberespaço provavelmente colabora para o desenvolvimento de formas multidimensionais de raciocínio requeridas para análise de sistemas complexos, isto é, de fenômenos que emergem de elementos definidos, cada um, por mais de três variáveis. Mais importante seria, no entanto, se a experiência multidimensional do ciberespaço pudesse servir de ponto de partida para questionamentos sobre os limites da abrangência não apenas da percepção humana, mas das verdades políticas, sociais e científicas a partir das quais se constrói a 'objetividade' de uma determinada concepção de espaço. A apreensão da hiperespacialidade do ciberespaço poderia dar continuidade ao processo de identificação das discordâncias entre a experiência perceptiva e o conceito cartesiano (absoluto) de espaço a respeito do qual considera P. Virilio: Confessar que o essencial para o olho humano é invisível, e que, dado que tudo é uma ilusão, tanto a teoria científica quanto a arte não seriam mais do que manipulações de nossas ilusões, ia contra os discursos políticofilosóficos que desenvolviam, com o desejo de convencer o maior número possível de pessoas, um desejo de infalibilidade e uma forte tendência à charlatanice ideológica. Evocar publicamente a formação de imagens mentais, seus aspectos psiquico-fisiológicos portadores de sua fragilidade e de seus limites era violar um segredo de Estado bastante comparável ao segredo militar, dado que recobria um modo de manipulação de massas quase infalível" (Virilio, 1989, pp. 36-37). Não é por acaso que uma das obras mais significativas desenvolvidas sobre a hipótese de espaços hiperdimensionais não é um tratado matemático, mas uma contundente crítica social elaborada sob a forma de ficção. Flatland, um romance de E. A. Abbott publicado pela primeira vez no século XIX, discute as possíveis implicações da interação com múltiplas dimensões a partir da experiência de um personagem, 'A Square', cujas restrições perceptivas são análogas às dos 'seres planos' hipotéticos já discutidos neste texto. A partir da confrontação com um universo de três dimensões, A Square passará necessariamente a questionar a ordem social, econômica e política de Flatland, será preso e sua história guardada em segredo inclusive "com a destruição de todos os oficiais que a tinham ouvido" Abbott, 2000, s. p.). No presente momento, em que as características do ciberespaço ainda não estão plenamente configuradas, o caráter multidimensional da hipermídia e a diversidade das várias páginas que se entrecruzam para compor a World Wide Web enfrentam a resistência acirrada de propostas de conformação da estrutura espacial da Web aos princípios da Geometria Euclideana, através da inclusão de elementos tridimensionais 'realistas' na rede e desenvolvimento de estratégias linearizantes para reduzir o que se convencionou chamar de 'desorientação' típica da navegação hipertextual. Diante da possibilidade de que o desenvolvimento do ciberespaço venha a ser norteado pelo paradigma de representação que chamamos 'realista', resta celebrar a World Wide Web como a conhecemos apropriando a referência com que Abbott abre o capítulo de Flatland em que A Square é introduzido aos 1 0 10 Fragoso, S. ‘Espaço, Ciberespaço, Hiperespaço’, Textos de Comunicação e Cultura, n. 42, UFBa, 2000, p. 105-113. mistérios do espaço tridimensional: Oh, admirável mundo novo. . . . Quando encontramos novos mundos . . . em vão lutamos para preservar a ordem que já conhecíamos, e finalmente deixamos de resistir e nos entregamos ao novo modo de ver as coisas, onde quer que este possa levar-nos, sabendo que nossas experiências jamais nos parecerão as mesmas. (Shakespeare, A Tempestade, apud T. F. Banchoff, 1990, s. p.) Referências Bibliográficas Abbott, E. A., Flatland. Primeira Edição 1884. Disponível http://www.geom.umn.edu/~banchoff/ISR/ISR.html [jan 2000] on-line a partir de Berners-Lee, T. 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