o INDIZíVEL
NO PENSAMENTO INDIANO: A SABEDORIA QUE
ULTRAPASSA OS CONCEITOS
Roberto de Andrade Martins
O paradoxo na tradição dos Vedas
Na literatura sagrada indiana, quando os sábios buscam o princípio de
toda a realidade, desde a tradição mais antiga (os Vedas) até as Upeniseds,
surgem com certa frequência afirmações que parecem absurdas ou
paradoxais. Isso ocorre principalmente quando estão se referindo à Realidade
Ultima, que é denominada Brahman a partir do período das Upenieeds, ou ao
seu equivalente dentro de cada ser humano, o Eu ou ãtman.
Um primeiro exemplo que vamos analisar é o NãsadTya 5úkta (hino
129 da décima menasts do Rgveda), às vezes denominado "Hino da Criação",
que descreve o processo de surgimento de tudo aquilo que existe. Esse hino
começa afirmando: "Então não havia o inexistente, nem havia o existente".
Esta frase desperta a atenção tanto pelo seu caráter paradoxal quanto pelo
nível de abstração. Devemos levar em conta que o Rqved« foi composto
no século XV a.c. ou (o que é mais provável) vários séculos antes disso
(Bianchini, 2012a). Para efeito de comparação, Tales de Mileto - talvez o
primeiro filósofo pré-socrático
do mundo grego - viveu aproximadamente
entre 624 e 546 a.c., isto é, no mínimo oito séculos depois da elaboração do
Rgveda.
Vejamos as duas primeiras estâncias do Nasadiya Súkts:
nãsadãsln no sadãsít tadãnirn nãsíd rajo no vyomãparo yat I
kimãvarlvan kuhakasvasarrnannambhah kimãsldgahanarh gabhlrarh II 1 II
na mrtyurãsid arnrtarn na tarhi'na rãtryã'ãhna'ãasltprake'tal) I
ânldavãtam svadhayã tadekarh tasmãddhãnyannaparal) kifícanãsa II 2 II
Elas podem ser assim traduzidas (Panikkar, 1989, p. 58; Muir, 1872,
vol. 5, pp. 356-357; Bose, 1966, pp. 302-305):
1. Então não havia o inexistente, nem havia o existente; não havia
atmosfera, nem o céu além dele. O que envolvia? Onde? Em que
receptáculo? Havia lá água, um profundo abismo?
2. Então não havia morte, nem não-morte; não havia distinção entre dia e
noite. Aquele um (ekaril) respirava, sem respirar, por si próprio. Não havia
nada diferente dele, ou acima.
o início da primeira estância pode ser assim decomposto em palavras:
"na asat ãslt na u sat ãslt tadãnTm", onde a palavra sat significa o ser, o real,
o existente, e a palavra asat (que é sua negação) significa o não-ser, o irreal,
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84
\
\
o inexistente (Monier-Williams, 1979, pp. 118, 1134). Portanto, estão sendo
realmente utilizados dois termos altamente abstratos, nesse hino. Todos os
tradutores e comentadores concordam sobre o significado da primeira frase:
"Então não havia o inexistente, nem havia o existente".
O início da segunda estância também contém uma contradição:
"Então não havia morte nem não-morte". O texto em sânscrito, decomposto
em palavras,
"na miyur ãsTtarnrtyarri na tarhi", onde as palavras centrais
são mttvu, que significa morte, e sua negação emityu (ou ,amrtya) que
significa não-morte ou imortalidade (Monier-Williams, 1979, pp. 82~827).
.'. .• De acordo com a lógica clássica (Wright, 1995, p. 20), nao existe
uma terceira possibilidade além do existente e do não existent~, ou da morte
e da não-morte (tertium non datur), portanto as duas afirmaçoes deste hino
que dest,acamosacima são absurdas.
,_
'
" E fácil encontrar outros exemplos de afirmaçoes paradoxais nos
Vedas. Outro exemplo aparece no "Hino do Homem", ou Puruse Sükta (R9veda
X.90.5), que afirma que vtrêj nasceu de Puruse, e depois Puruse nasceu de
Virãj (Panikkar, ,1989, p: 75; Muir, 1872, vol. 5, p. 369; Bose, 1966, p. ,285;
Rao 2008 p. 44). Não vamos aqui analisar em profundidade o Significado
des~es dO{s termos-chave, Virãj e Puruse; basta indicar que Virãj, palavra
que pode ser traduzida como "Governante", é o nome" de um ser divino; e
Puruse, que pode ser traduzido como "homem", é também neste hino um ser
sobrenatural (Monier-Williams, 1979, pp. 637, 982). Interpretando-se essa
afirmação literalmente, concluiríamos que Puruse é avô de si próprio, o que
é impossível.
.,
.
.
.
.Não éapenas nas obras religiosas indianas mais antigas que aparecem
tais paradoxos. Nas Upenlseds, textos filosóficos e especulativos posteriores
(os mais antigos dos quais são anteriores ao surgimento do Budisrno), os
aparentes "absurdos" também são frequentes, como na Katha Upenised
(1.2.20), que descreve o ãtman (o Eu mais profundo) como sendo "~~nor
do que o menor (al)ol) aI)Tyãn), maior do que o maior (mahatal) mehivên)"
(GambhTrãnanda, 1987, p. 57; ).
e:
o impensável
ou indizível
mais cho,cante- aquilo que é 'completamente diferente' [ ... ], aquilo que está
muito alem da esfera do usual, do inteligível e do familiar [ ... ]" (Otto, 1923,
p. 2?). A. impossibilidade de compreender racionalmente a manifestação
religiosa e um de seus elementos essenciais, segundo Rudolf Otto:
o
objeto verdadeiramente 'misterioso' está além de nossa apreensão e
compreensão, não apenas porque nosso conhecimento tem certos limites
irremovíveis, mas porque nele nós chegamos a algo que é 'totalmente
diferente', cujo tipo e caráter são incomensuráveis com o nosso e diante do
qual nós, portanto, recuamos com um espanto que nos atinge tornandonos mudos e congelando-nos. (Otto, 1923, p. 28)
Mircea Eliade, por outro lado, enfatizou em várias de suas obras a
existência de paradoxos em toda experiência religiosa, dando exemplos da
coincidentia oppositorum, ou seja, da identificação entre os opostos como
um elemento importante nas religiões (Saliba, 1976, pp. 57,62,172-173).
Assim, levando em conta os conhecimentos de que dispomos
sobre a fenomenologia da vivência religiosa, não devemos nos espantar
com o surgimento dessas contradições e paradoxos nos textos indianos. É
interessante notar que esse aspecto aparece de forma explícita e consciente
em várias das análises apresentadas nas Upeniseds.
_ Um conceito sânscrito central para nossa discussão é acintya, a
negaçao do termo cintya que significa aquilo que deve ser pensado, concebido
ou imaqinado (f\)onier-Williams,1979, p. 398). Assim, acintya significa aquilo
que e inconcebivel, que ultrapassa o pensamento (Monier-Williams, 1979,
p. 9). No contexto do pensamento indiano tradicional, acintya é não apenas
um termo genérico para o impensável ou inexplicável, mas uma palavra
que denota o Divino, pois diz-se que a mente não pode conhecer o inefável
(Grimes, 1996, p. 9). Podemos ver este uso do termo na Maitr'j Upenissd, onde
se fala a respeito de Brahman, o substrato comum a todas as divindades:
Tu és Brahmã e realmente tu és ViféIJU,tu és Rudra [Siva] e tu és Prajãpati;
tu és Agni [o Fogo], verune, Vãyu [o Vento], tu és Indra e tu és Candra [a
Lua]. [ ... ] Tu és tudo, tu és o imperecível. Todas as coisas existem em ti em
muitas !ormas, para seus fins naturais. Senhor do universo [Visvesvara],
saudaçoes a ti, o Eu de tudo [visvãtman], aquele que faz tudo, aquele
que desfruta de tudo [ ... ] Saudações a ti, que tens o poder de ocultar, o
incompreensível [acintyaJ, aquele que não tem medida, que não tem início
nem fim. (Maitri upenisea V.1; Radhakrishnan, 2009, p. 814)
Todos esses exemplos podem trazer certa perplexidade. Será isso
uma indicação de que os antigos pensadores indianos não eram capazes de
pensar de forma lógica? Essa não parece ser uma interpretação adeq~ada.
Os pensadores indianos se preocuparam em desenvolver uma teona do
conhecimento e da argumentação, que inclui a análise lógica dos argumentos
válidos. Vários séculos antes da era cristã, já existia uma tradição de debates
filosóficos (descritos em algumas das mais antigas Upeniseds), e parece ter
sido a partir disso que se desenvolveu a análise dos argumentos; um pouco
antes ou pouco depois do início da era cristã, já existiam importantes manuais
sobre o assunto (Matilal, 1998, p. 2).
O que, então, podem significar essas contradições lógicas que
encontramos em textos saqraeíos da tradição indiana antiga?
Autores ocidentais do século XX, como Rudolf Otto e Mircea Eliade,
indicaram o paradoxo, a dificuldade ou impossibilidade de expressão racional,
como um dos elementos do sagrado. Uma das características da experiência
do numinoso, para Otto, é a de estar diante de um mistério. "Tomado ~o
sentido religioso, aquilo que é 'misterioso' é - para lhe dar talvez a expressao
A mesma Upenised esclarece que essa realidade impensável não é
inatingível: ela pode ser vivenciada pela pessoa que consegue ultrapassar as
limitações de sua mente:
Aquilo que está além da mente [acitta], que está no meio da mente
o impensável [acintya], o oculto, o mais elevado; que a pessoa funda su~
mente [citta] ali [ ... ] (Maitri Upenised VI.19; Radhakrishnan, 2009, p. 831)
O pensamento indiano não pode ser compreendido sem se levar em
conta sua dimensão prática: ao falar sobre essa realidade incompreensível, as
escrituras antigas indicam, ao mesmo tempo, a possibilidade de atingi-Ia. A
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Realmente, no início, este mundo era Brahman, o infinito [ ... ]. Este Eu
supremo [paramãtman] é inconcebível [anühya], ilimitado, não nascido,
que ultrapassa o raciocínio [atarkya], impensável [acintya], cuja essência
é o espaço. (Maitri Upenised V1.17; Radhakrishnan, 2009, p. 829-830)
\
filosofia é inseparável da prática (Yoga) destinada a permitir essas vivências.
Mãl)ç/ükya Upenised - introdução
Vamos analisar a seguir a Mãf)çJükya Upenised, que é um texto muito
curto (apenas 12 parágrafos). A Mãf)çJükya é considerada urna das mais recentes
das Upeniseds "clássicas" (as que foram comentadas por Sankaracarya), tendo
sido escrita talvez no início da era cristã (Cohen, 1999, p. 139). A Muktikã
Upenised, que contém a Iistagem das 108 Uperuseds tradicionais, afirma que
a Mãf)çJükya, sozinha, é suficiente para se atingir a libertação espiritual (mukti
ou mokse) (Joshi, Bimali & Trivedi, 2006, vol. 2, p. 497; Aiyar, 1980, p. 3).
Como outras Upeniseds, o tema central da Mãf)çJükya é a tentativa
de esclarecer a natureza do ãtman (o Eu mais profundo) e de Brahman (a
realidade absoluta), e para isso ela aborda dois tópicos: o mantra Otn, e os
estados de consciência: (1) o estado desperto, (2) o estado de sono com
sonhos, (3) o estado de sono sem sonhos... e o quarto estado (caturtha
ou turJya). Veremos que ao abordar essa quarta possibilidade a Mãf)çJükya
Upenised introduz paradoxos, e comenta sobre sua natureza.
Vamos apresentar, a seguir todo o texto da Mãf)çJükya Upenised
(Radhakrishnan, 2009, pp. 695-705;
Nikhilãnanda, 1987, pp. 7-80;
Gambhirãnanda, 1979, pp. 3-56; Varenne, 1972). Discutiremos especialmente
seu parágrafo 7, que é o mais importante sob o ponto de vista do tema
abordado neste artigo.
omityetadaksaramidam sarvarn tasyopavyãkhyãnarn
bhavadbhavtsvadttl sarvamorikãra eva I
yaccãnyattrikãlãtitarn tadapyorikãra eva II 1 I!
bhütarn
1. Om, aquele imutável (aksara), é tudo o que existe. O que foi, o que
é e o que será, tudo é realmente a sílaba Om (orn-kãra);
e tudo o que não
está submetido ao tempo triplo (trikãla) é também, realmente, a sílaba Om.
A sílaba Orh,representada pelo signo especial ;jjJ (que não segue as
regras usuais.daescrita devanãgarJ), aparece desde a literatura védica como
um sírnbotosaqrado supremo. Ela não tem um significado conceitualmente
inteligível. E o equivalente sonoro da realidade última e, ao mesmo tempo,
um meio pelo qual esta realidade transcendente é alcançada (Klostermaier,
1994, p. 78). O Om é utilizado no início e no fim de todo hino e também de
todo ritual religioso; tudo chega a uma conclusão com o.Om,
Ele é aqui caracterizado como eksere, imutável, eterno, imperecível,
inalterável, representando assim a realidade que está além dos fenômenos
será afirmado no parágrafo seguinte. Essa
mutáveis, que é Brahman,como
realidade faz parte do universo submetido ao tempo triplo (passado, presente,
futuro), mas também é aquilo que está fora do tempo (atemporal, eterno).
sarvarn hyetad brahmãyamãtmã
brahma so 'yarnãtrnã catuspãt II 2 II
2. Na verdade, tudo isso é Brahman;
e sem. dúvida este ãtman é
Este ãtman tem quatro condições (pãda).
..
Brahman é a realidade absoluta considerada corno.taquilo" (tat), algo
externo a nós, superior a tudo o que existe. O êtmen é a essência interna
da pessoa, o Eu mais profundo, que se diferencia do corpo, das forças vitais,
dos órgãos de ação e dos sentidos, da mente, de tudo o que vivenciarnos e
Brahman.
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daquilo g~e nos lembramos, algo permanente, inalterável, que é o núcleo
da5onsClepCla. Um dos mai~ profundos ensinament.os ?as Upeniseds é que
ou seja, que cada um de nos e, essencialmente, a
o atman e Brahman,
realidade a.bsol~ta ,-. e que ISSOpode ser vivenciado.
Não se trata de uma
mera doutrina filosofica e sim um resultado proveniente de uma experiência
que pode ser. repetida e corroborada pelas pessoas que se esforcem e qu~
srqarn o c~ml,nho adequado para atinqir essa vivência. E o caminho para
atinqí-la nao e atr~ves da razao, e sim superando os limites do pensamento.
Para explicar o mo~o de chegar a isso, a Mãf)ÇJükya Upenissd
c~meç~ e~~larec.endoque o at,!,an tem quatro condições (pãda). A palavra
pada significa, Iiteralme.nte., pe, pata ou perna (Monier-Williams, 1979, p.
617). No pensamento indiano, e comum encontrarmos a decomposição
de cei):os conceitos em quatro partes, utilizando a comparação com um
quadrupede (um~ vaca, por exemplo). Nessas análises, geralmente os
quatro aspectos sao separados em um grupo de três pãdas que manifestam
~ertas semel~anças, e o quarto aspecto que é diferente dos demais. Em um
Impo~ant~ hl~o do Rçvede (1.164.28, 45), a palavra ou fala divina, Vãc, é
~escn~? pnmelrament,e como um. bezerro, e depois são descritas suas quatro
pata~ . De forma analoga, no Hino do Homem (Rgveda X.85.40) Purusa é
descrito ~omo possuindo qu~tro "patas". No período das Upanisad;, o quarto
aspecto e geralmente considerado como superior aos outros três (Cohen
1999, p. 139).
'
Mãl)ç/ükya Upani~ad- os três primeiros estados
Os parágrafos seguintes vão
condições do ãtman.
descrever os quatro
jãgaritasthãno bahlf prajfiah saptãnçah
ekonavtmsatrmukhan sthOlabhugvaisvãnaraiJ
aspectos ou
pratharnah pãdah II 3 II
.
3. O estado desperto Uãgarita-sthãna),
conhecedor (prajna)
dos
objetos externos,. que t~m sete membros e dezenove bocas, e cujo domínio é
o mundo da manlfest~çao grosseira, é a primeira condição, veisvõnere.
A palav~a sthana representa o ato de ficar, de permanecer em certo
lugar de modo firme, es~a~ionário;'podes~r também uma posição ou postura,
u_m ~sta~o,. ~ma condição (MonJer-Williélms, 1979, p. 1263). A' palavra
jeçerite Significa desperto, ejãgara pode representar tanto o estado desperto
quanto aquilo que se ve ou percepe nesse estado (Monier-Williams, 1979, p.
417) ..N~ss: estad~, a pessoa esta voltada para o exterior, captando o mundo
constltuído pelos cmc?,e!ement~s w.osseiros (éter; ar, fogo, água, terra),
A ~91<:vra veusveners ,Significa aquilo que se relaciona a todos os
ho~ens iv,svC/-""qra),. o que e comum, geral. No período vêdíco, era uma
deslg.naça~ para a dívíndade Agni (o Fogo), que pertence a todos os homens
(r:'10nJer-Williams, 1979, p. 1027). No estado desperto, uma pessoa está
diante do mundo e~ter/lo, que é comum a todos os homens.
_~ comenta rio de Sankarãcãrya (Niknliãnanda, 1987, p. 14;
Gam~hlranandc:, 19?9, p, 102 e~c1areceque os sete membros (saptãnga) aqui
mencionados sao uma r~erenCla a u~a p'a~sagem da Chêndoqye Upenised
(,!.18;~) que Co~para ? êtmen a Agm vetsvenere indicando urna correlação
simbólica que nao precisernos detalhar aqui. O mesmo comentário interpreta
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\
as dezenove bocas como sendo as portas que estabelecem o contato entre
os cinco
a pessoa e o mundo externo: os cinco sentidos (buddhindriyas),
órgãos de ação (karmendriyas),
as cinco forças vitais (prãf)a), a mente
(manas), a sabedoria (buddhi), a individualidade (ahamkãra), o pensamento
(citta). Outras Upenised mencionam catorze órgãos (escluindo as cinco forças
vitais), como por exemplo a Servopenisetsêre
(Deussen, 1966, p. 299) e a
Subãla Upenised (Radhakrishnan, 2009, pp, 868-873). Esses detalhes não
têm grande importânçia, e talvez a interpretação não seja exatamente esta,
que foi atribuída por Sarikara.
svapnasthãno 'ntah prajfiah saptãnqa ekonavtmsatimukhah
praviviktabhuktaijaso dvítiyah pãdah II 4 II
4. O estado de sonho (svapna-sthãna),
o conhecedor dos objetos
internos, que tem sete membros e dezenove bocas, e cujo domínio é o mundo
da manifestação sutil, é a segunda condição, taijasa.
Svapna pode significar o ato de dormir, o sono, a preguiça, e pode
também indicar um sonho (Monier-Williams, 1979, p. 1280). No contexto da
Mãf)çJükya Upenissd, devemos considerar este último significado como mais
adequado. Em oposição ao estado desperto, em que a pessoa estava voltada
para fora, no estado de sonho a pessoa se volta para o interior. Em vez de
estar em contato com os objetos materiais, está em contato com os objetos
sutis (pravivikta). A palavra pravivikta pode significar fino, delicado, sutil, ou
também aquilo que está isolado, separado, solitário (Monier-Williams, 1979,
p. 692), sendo especialmente adequada para designar aquilo que é percebido
durante um sonho. Este segundo estado é denominado taijasa, que significa
brilhante luminoso (constituído por tejas, luz) (Monier-Williams, 1979, p.
455).
yatra supto na kaficana kãrnarn kãmayate na
kaficana svapnam pasyatl tatsusuptam I
susuptasthãna eklbhútah prajããnaçhana evãnandamayo
hyãnandabhukcetomukhal) prãjriastrtlvan pãdah II 5 II
5. Quando aquele que dorme não deseja nenhum objeto n..;fn vê
nenhum sonho (svapna), cujo domínio é o mundo do sono profundo (supta)
no qual a experiência se torna unificada, que é um conhecimento informe,
que tem a experiência da beatitude (ãnanda), é o caminho que leva ao
conhecimento' dos dois outros estados, esta é a terceira condição, prãjfía.
Supta é uma palavra associada a svapna: ambas são derivadas
do verbo svap, dormir. Supta significa o ato de dormir, aplicando-se
especialmente ao sono profundo (sem sonhos) (Monier-Williams, 1979, p.
1230). Neste parágrafo, o texto esclarece que nesse terceiro estado (trtiyapãda) a pessoa não tem desejos nem sonha, o que o distingue claramente
do segundo estado.
Normalmente, consideramos o sono profundo, sem sonhos, come
um estado vazio, de inconsciência. No entanto, a Mãf)çJükya Upenised mdice
características muito especiais e pouco usuais deste estado. Ele está associado
Nas Upeniseds, qhen:
a um conhecimento informe (prajfíãna-ghana).
costuma significar "nada além de", ou meramente. Por isso, a expressãe
prajfíãna-ghana significa mero conhecimento, nada além de conhecimentr
(Monier-Williams, 1979, pp. 376, 659), ou um conhecimento que não apont
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para nada além dele próprio. Não é um conhecimento vazio, já que está
acompanhado pela experiência da beatitude (ãnanda). O conceito de ãnanda
é fundam_ental nas Upeniseds, sendo um dos atributos de Brahman (Bianchini,
2012b). Ananda é uma felicidade plena, na qual não existe mais desejo porque
se atingiu um estado de completamento, no qual nada mais está faltando.
Esse terceiro estado é designado aqui como prêjiie, que significa inteligência,
conhecimento, sabedoria. Essa estranha caracterização do estado de sono
profundo, sem sonhos, será esclarecida mais adiante.
Cada um dos três primeiros estados de consciência está descrito em
um parágrafo. Esperaríamos que, logo em seguida, apareceria a descrição do
quarto estado. No entanto, o parágrafo seguinte (Mãf)çJDkyaUpenised 6) não
tem uma referência muito clara. Há duas interpretações distintas a respeito
dele: poderia ser uma continuação do parágrafo anterior (5), que descreve o
terceiro estado (tritiya); ou poderia ser uma introdução ao parágrafO seguinte
(7) que apresenta o quarto estado (Wood, 1992, pp. 3-4).
e$a sarvesvara esa sarvajfia eso 'ntarvãmvesa
yonil) sarvasya prabhavãpyayau hi bhOtãnãm
II 6 II
_.
6. Este é o governante (l5vara)de tudo; este é aquele que conhece
tudo, é o controladorintêrno; é a fonte de tudo; é a fonte de todas as coisas
e em que elas finalmente desaparecem.
Isvere é um termo que significa governante, regente, rei, senhor
(Monier-Williams, 1979, p. 171). No contexto religioso Hindu, é aplicado à
divindade (deva) qL1~seja considerada superior às outras,ogovernante
do
universo ede todas as coisas. Não é uma designação de uma divindade
específica, mas um nome aplicado a qualquer deva que seja consideradosupremo (por exemplo, Silla ou. Vi$f)u)~Não é um sinônimo de Brahman,
que é uma realidade impessoal;-l5vara é uma divindade considerada como
pessoal e providencial. Na tradição indiana/as funções cósmicas divinas mais
importantes são acriação, a sustentação e a dissolução do universo. Este
parágrafo menciona que Isvere é a origem de todas as coisas e que tudo se
dissolve nele, no final.
No entanto.i.a Mãf)çJükya Upenised não está procurando explicar o
cõnhecímento cosrnolóqico e sim o Eu (ãtman) e seus estados. Por que,
então, mencionar o Governante? Porque existe o correlato interno de 15vara ,
associado ao sono profundo. Desse estado brotam os outros dois, e depois
eles se dissolvem no sono sem sonhos. Nesse estado não há conhecimentos
internos ou externos, mas há um conhecimento informe, e esse estado
permite adquirir conhecimento a respeito do controlador interno e daquele
que conhece, ou seja, a própria consciência sem conteúdos. Permanece, é
claro, o mistério de como seria possível ter consciência do estado de sono
sem sonhos; mas ainda precisamos postergar esse esclarecimento.
MãQçJükya
Upenised - o quarto estado
O próximo parágrafo, o mais longo desta Upenised, descreve o quarto
estado:
nãntah prajfiam na bahih prajfiarn nobhayatal) prajfiarn
na prajfiãnaqhanarn na prajfiam nãprajfiam I
adrsyamavyavahãryamagrãhyamaJak$aQamacintyamavyapadesyam
91
\
ekãtmapratyayasãram prapafícopasarnam sãntarn
sívarnadvattarn caturtharn manyante sa ãtmã 5a vijneyal)
II 7 II
7. Nem conhecedor interno, nem conhecedor externo, nem conhecedor
de ambos, nem um conhecimento informe, nem conhecedor; nem nãoconhecedor. Não pode ser visto, é impraticável, impossível de ser captado,
indescritível, impensável, indefinível. A essência da consciência (praty?wa)
do Eu (ãtman) uno, a aquietação do universo, o pacífico, o auspicioso (Siva)
sem dualidades, é pensado como o quarto (caturtha). Este é o Eu (ãtman),
este deve ser vivenciado:
Nesta passagem, a Mãl)çJükya Upenised se refere ao quarto estado
mental (caturtha ou turJya), que é diferente dos três anteriores: não é nem
o estado desperto, nem o de sonho, nem o de sono sem sonhos. Porém,
parece impossível existir esse quarto estado. Uma pessoa ou está desperta
ou dormindo. Se está dormindo, está tendo sonho ou não está tendo sonho.
Não parece haver uma ,quarta possibilidade. A própria ideia de um quarto
estado é paradoxal.
,,'
Ele é descrito inicialmente através de uma sequência de negações
(descrições precedidas porria, que significa "não"): "ne-enteti prejiiem na
behih prejãem nobhayatatj -orejiism ne prajnãnaghana((l na prajna((l naeprejiiem", ou seja: "Nem conhecedorinterho, nem conhecedor externo, nem
conhecedor de ambos, nem um conhecimento informe, nem conhecedor, nem
não-conhecedor". Mas essa sentença é contraditória, absurda; pois exclui
todas as possibilidedes..
." .'
,.
Como nos outros casos que foram mencionados antes, tªjs paradoxos
não são uma evidência da falta de lógica dos pensadoresIndtàhos e sim
uma indicação de que, em certos pontos, eles querem indicar algo indizível,
que não pode ser expresso claramente por palavras. Isso é explicitado a
seguir, no texto, por uma sequência de palavras negativas (todas elas com
o prefixo a-) :~'a-drSyam a-vyavahãryam a-grãhyam e-teksenem a-cintyam
que poderíamos traduzir (utilizando o prefixo in-): ine-vvepedesvem",
observável, in-praticável, in-captável, in-descritível, im-perisável, in-definível
(sei que "incaptável" não existe, mas é uma construção compreensível). Esses
adjetivos apontam para algo que está além do pensamento, que só pode
ser compreendido de uma outra forma (não conceitual) e que exige uma'
experiência ou vivência pessoal (vijnana) não racional. O aparente absurdo é
um objeto de experiência.
.
O final deste parágrafo apresenta os aspectos afirmativos ou positivos
desse quarto estado, que são os vários termos com final -((I que precedem.
a palavra csturthem (o quarto): "ekãtmeprstvevesãrem
prepeiícopesetnem
sêntem sivemedveitem".
, A primeira caracterização afirmativa é eka-ãtma-pratyaya-sãra.
Eka significa um, a unidade, uma coisa una, indivisível; ãtman é o Eu mais
interno; pratyaya pode significar convicção, certeza, ou aquilo que permite ter
certeza (prova), podendo também significar a consciência (Monier-Williams,
1979, p. 673); e sãra significa poder, força, firmeza, energia, a substância
ou essência dealqo, o ingrediente principal de alguma coisa (ibid., p. 1208).
A expressão completa pode ser traduzida- por "a essência da consciência do
Eu uno", enfatizando que o ãtman não tem partes e que seu poder essencial
é a consciência.
Prepeiice significa
A segunda caracterização é prspeiics-upessme,
manifestação, expansão, universo, mundo visível; upeseme significa ces-
92
sação,_-calma, aquletação (Monier-Wi-Iliams, 1979, pp. 207, 681). Assim,
prapanca-upasama pode ser traduzido como um estado no qual o universo
se aquieta.
A três últimas características afirmativas do "quarto estado" são:
s~n~a! que siqniftca tranquilo, calmo, liyre de ,paixões, em paz; sjva, que
significa auspiooso, benevolente, e que e tambem o nome do deva Siva, que
representa simbolicamente a consciência interna imutável; e advaita que
significa sem du~lidade (Monier-Williams, 1979, pp. 19, 1064, 1074). '
Este paragrafo da Mã(lçJükyaUpenised termina afirmando "Este é o Eu
(ãtman), este deve ser vivenciado". Portanto, neste quarto estado (caturtha)
é possível ter uma vivência direta do ãtman, do Eu mais profundo, que é
idêntico a Brahman. Atingir este quarto estado é de suprema importância
dentro da tradição espiritual indiana. Mas, apesar de todos os esclarecimento~
apresentados no texto, ainda não está claro como pode existir ou o que significa
na prática, essa vívência que é diferente do estado desperto, do estado d~
sonhos e do estado de sono sem sonhos. Procuraremos esclarecer isso mais
adiante. Vamos, no entanto, prosseguir com a análise da Mã(lçJükya Upenised.
Mãl)çlükya Upani!?ad - a sílaba sagrada Om
Após se referir aos quatro estados, o texto retorna à discussão da
sílaba sagrada Om, que tinha sido mencionada logo no início referindo-se
também ao ãtman e a Brahman:
'
1. Otii, aquele imutável, é tudo o que existe. O que foi, o que é e o
que será, tudo é realmente a sílaba Om (om-kãra); e tudo o que não está
submetido ao tempo triplo (trikãla) é também, realmente, a sílaba Om,
2. Na verdade, tudo isso é Brahman; e sem dúvida este ãtman é
Brahman. Este ãtman tem quatro condições (pãda).
Ç'epois de falar sobre os quatro estados, a Mã(1çJükyaUpenised os
associa a silaba Om:
'vamãtmâdhyaksaramonkâro
'dhlrnãtram
pãdã mãtrã mãtrãsca pãdã akãra ukãro makãra iti
50
II 8 II
8. Esse mesmo ãtman que foi descrito é a imutável sílaba Om (onkãra),
sob o ponto de vista das medidas (mãtra). As medidas são os aspectos, e 05
aspectos são as medidas, que são A (akãra), U (ukãra), M (makãra).
Embora a sílaba Om não seja escrita CQ.lnO A-U-M, ela é analisada,
em diversas Upenised, como se fosse composta por esses três fonemas 0.5
quais são associados a seguir com os três primeiros estados de consciên~ia:
jãgaritasthãno varsvãnaro 'kãral) prathamã
mãtrãpterãdimattvãdvãpnoti
ha vai sarvãn
kãrnãnãdtsca bhavati ya evarn veda II 9 II
9. O estado desperto, que é veisvênere, é a primeira sílaba A (akãra),
por, per!:'1ear tudo ou por ser a primeira.' Aquele que sabe isso atinge a
realização de todos os seus desejos e se torna o mais elevado.
svapnasthãnastaijasa ukãro dvitiyã rnãtrotkarsãd
ubhavatvãdvotkarsetl
ha vai jfiãnasentattrn sarnãnasca
bhavati nãsyãbrahmavitkule bhavati ya evarn veda II 10
93
II
\
10. O estado de sonho, que é taijasa, é a segunda sílaba U (ukara),
por ser superior ou por estar entre as duas. Aquele que sabe isso atinge um
conhecimento superior, é tratado de modo igual por todos e nenhum de seus
descendentes deixa de conhecer Brahman.
susuptasthãnah prãjõo rnakãrastrtlvã mãtrã miterapítervã
minoti ha vã idam sarvamapttísca bhavati ya evam veda 11 1111
11. O estado de sono profundo tsusupte), que é prêjiie, é a terceira
sílaba M (makara), porque é a medida de tudo e aquilo em que tudo se
unifica. Aquele que conhece isto é capaz de captar a natureza de tudo e se
torna tudo.
O quarto estado de consciência não está associado a uma das partes
da sílaba Om, e sim ao Om como um todo, conforme descrito no paráqrafo
seguinte:
arnãtrescaturtho 'vyavahãryal) prapeficopasarnan slvo 'dvaita
evamorikãra ãtrnaíva samvtsatvãtmanãtmãnarn ya evarn veda I
ya evam veda 111211
12. A ausência de medida (emêtre) ~ o quarto, impraticável, que
ultrapassa o universo, que é o auspicioso (Siva) não-dual. Realmente, a
sílaba Om (onkara) é o Eu (ãtman). Aquele que conhece isso une seu Eu com
o Eu cósmico; aquele que conhece isso.
Assim como o quarto estado de consciência é impraticável
(avyavahãrya), a quarta parte da sílaba Om é também impraticável, pois
são correspondentes. Captando a sílaba Om de uma forma não-dual se
pode atingir essa vivência. Isso significa transcender sua divisão em partes.
Da mesma forma, transcendendo a divisão dos estados de consciência, se
atinge o quarto estado, que não é exatamente um estado, porque é algo que
pertence a uma outra categoria de vivência.
Os estados de consciência na tradição das Upenised
A doutrina dos estados de consciência aparece de diferentes formas
nas diversas Upenised, é possível que ela só tenha adquirido gradualmente o
significado que aparece na Mãf)çJükya Upenissd. Na Bttisdêrenyek» Upenised
(que é considerada uma das mais antigas) há um questionamento a respeito
daquilo que ocorre à consciência durante o sono profundo: "Quando ele
adormece, onde estava aquele homem que consiste em sabedoria, e de onde
ele retorna?" (Deussen, 1966, p. 297). Nesta e em outras Upenised antigas,
há menção ao estado desperto, ao estado de sonhos e ao de sono sem sonhos
(ibid., pp, 297-299), mas não há referência ao quarto estado, nem há um
esclarecimento detalhado sobre o sono sem sonhos.
O estado desperto e o de sonhos são semelhantes: em ambos,
ocorrem sensações e ações. No entanto, no estado desperto a pessoa está
utilizando seus órgãos sensoriais e de ação para interagir com o mundo
externo, objetivo (comum a todas as pessoas), e no sonho está interagindo
com o seu mundo interno individual, subjetivo. O sonho parece tão real
quanto o estado de vigília, enquanto estamos sonhando; e durante o sonho,
não estamos cientes de que estamos sonhando.
Quem é o Eu? Esta pessoa aqui, que consiste em sabedoria em
94
meio às forças vitais, a luz dentro do coração. Permanecendo e mesmo ele
vaçueía nos dois mundos, parecendo pensar, parecendo se mover. Ao do'rmir
ele transcende este mundo e as formas da morte. [ ... ] Quando adormece ele
leva junto consigo o material deste mundo, ele o corta e utiliza para construir
[um outro mundo]; ele dorme por seu próprio brilho, por sua própria luz.
Nesse estado a pessoa se torna auto-iluminada. (Brhadãraf)yaka Upenissd
IV.3.7,9; Radhakrishnan, 2009, pp. 256-257)
Nestas escrituras mais antigas, o sono sem sonhos é descrito como
um mero estado de descanso:
Depois de ter desfrutado deste estado desperto, depois de ter vagueado
e visto coisas boas e más ,ele retorna de novo ao lugar de onde partiu, o
estado de sono (svapna). Assim como um grande peixe se move entre as
margens de um rio, indo para cá e para lá, assim também esta pessoa se
move entre esses estados, o de sonho e o desperto. Assim como um falcão
ou qualquer outro pássaro, tendo voado pelo céu, se torna cansado, dobra
suas asas e retorna ao seu ninho, da mesma forma esta pessoa se apressa
àquele estado no qual não tem desejos e não vê sonhos. (Brhadaraf)yaka
Upeniseo IV.3.17-19; Radhakrishnan, 2009, pp. 260-261)
Em algumas das Upenised este estado de sono sem sonhos é descrito
como uma fusão entre a pessoa e sua força vital (prãf)a): "Quando uma
pessoa está adormecida e não vê qualquer sonho, ele se unifica apenas com
a força vital (prãf)a)" (Kau$/taki-Brãmaf)a Upenised 1I!.3; Radhakrishnan,
2009, p. 777; Deussen, 1966, p. 307).
Assim como um pássaro preso a um cordão voa para este lado e
para aquele, e não encontrando outro lugar para repousar retorna ao ponto
ao qual está atado, da mesma forma, meu senhor, a mente (manas) voa
para este lado e para o outro, e não encontrando outro lugar para repousar:
retoma ao prêoe, pois é ao prêns que a mente está atada, meu senho~
(Çhãndogya Upenised VI.8.2; Radhakrishnan, 2009, p. 456)
Na Chãndogya Upenised, esse estado é considerado como próximo
ao.aniquilamento:
Quando uma pessoa está adormecida, serena, e não conhece sonhos, [ ... ]
ela não conhece a si mesmo, não sabe que "eu sou ele", nem conhece as
coisas aqui. Ela se tornou aquele que atingiu a aniquilação. Eu não vejo
nada bom nisto. (Chandogya upentsed VIll.11.1; Radhakrishnan, 2009,
p. 507)
O sono sem sonhos e a vivência do ãtman
O estado de sono sem sonhos parece uma fase de mera inconsciência
que !;>ó percebemos ao despertar. No entanto, ao longo das Upenised, pode-s~
perceber uma gradual valorização desse estado, que é difícil de compreender,
sob o ,(JQ;mtode vista de nossa psicologia ocidental. Em vez de ser um
estado sem consciência, o sono sem sonhos é descrito como um estado de
consciência pura, sem contaminação pelas vivências do estado desperto nem
pelas dos sonhos:
Esta, realmente, é a forma que está livre de desejos, livre de males,
livre do temor. Assim como um homem abraçado à sua esposa amada
não conhece nada fora ou dentro, di! mesma forma uma pessoa que
95
\
está abraçada por aquele Eu de sabedoria (prajfienatman)
não conhece
nada fora ou dentro. Essa, realmente, é sua forma na qual seu desejo é
preenchido (apta-kama), na qual o Eu é seu desejo (atma-kama), na qual
não há desejo (a-kama), livre de qualquer sofrimento. (Brhadaranyaka
Upenised IV.3.21; Radhakrishnan, 2009, p. 262)
Nos nossos estados usuais de consciência, nossa atenção está voltada
para o exterior ou para os processos internos. Nossa mente está repleta de
conteúdos provenientes das sensações, das lembranças, dos pensamentos,
que produzem desejos, temores, sofrimentos e prazeres. De acordo com nossa
concepção psicológica usual, nós nos identificamos com esses processos mentais;
se eles cessarem, não resta nada, há um aniquilamento. No entanto, de acordo
com o pensamento das Upenised, nosso Eu (ãtman) é algo que independe desses
conteúdos mentais, é a testemunha, a consciência, o observador que está
ciente desses processos. Mesmo quando esses processos cessam, permanece
uma consciência pura, que pode estar ciente de si própria, sem que isso envolva
um processo de pensamento. Este Eu mais interno é o próprio Brahman, o
Absoluto, que' pode ser caracterizado como realidade-consciência-beatitude
(sat-cit-ãnanda). A palavra ãnanda, normalmente traduzida como "beatitude",
representa um completamente perfeito, uma felicidade completa, na qual nada
falta (Bianchini, 2012b). As vezes, essa beatitude é comparada ao estado obtido
na união amorosa; quando também se pode atingir um completamento perfeito,
uma felicidade completa, na qual nada falta. A mesma Upani$ad deixa claro que
este não é um estado de jpconsciência:
Em vez de um estado de aniquilação, o sono profundo sem sonhos
é descrito nas Upenised como sendo um estado de sabedoria (prãjna),
de unificação, de conhecimento espiritual, de beatitude, de consciência.
Identificado com Brahman, o Eu é descrito como o senhor de tudo, o guia
interno, o berço do universo, a criação e dissolução de todos os seres
(Deussen, 1966, pp. 308-309).
Estar consciente no sono sem sonhos
o leitor poderia ponderar que a descrição apresentada na seção
anterior é interessante, mas não corresponde àquilo que ocorre quando
temos um sono profundo, sem sonhos. Em vez de atingir tal estado supremo,
simplesmente não temos consciência de nada e esse período parece apenas
um intervalo de tempo totalmente vazio. Samuel Brainard, por exemplo,
assim descreve esse terceiro estado:
No terceiro nível, o do sono sem sonhos completamente inconsciente,
a consciência não mantém sequer o dualismo interno sujeito-objeto do
estado de sonho. Neste nível o eu não tem identidade disjuntiva nenhuma,
nem sutil nem grosseira, material. Note que o nível do sono profundo se
refere especificamente ao domínio desses processos incoscientes que, em
seu conjunto, co-originam as realidade do estado desperto. No estado sem
sonhos, o ser que capta os objetos do ponto de vista da experiência direta
está totalmente adormecido. (Brainard, 2000, p. 141)
,r
Realmente, lá ele não vê, mas ele está realmente vendo, embora ele não
veja, pois não existe a cessação da visão do vidente, que é imperecível.
Não há, no entanto, um secundo, nada separado dele que ele possa ver.
(Brhadaranyaka Upenissd IV.3.23; Radhakrishnan, 2009, pp. 263-264)
Para compreender melhor essa descrição, pensemos em uma pessoa
que esteja em um quarto totalmente escuro. Não há nada que ela possa ver,
mas ela não perdeu sua visão, e pode ter consciência de estar olhando, sem
no entanto estar vendo qualquer conteúdo. A mesma Upenised se refere em
seguida às outras sensações (olfato, paladar, tato, audição) e também ao
próprio pensamento:
Realmente, lá ele .não pensa, mas ele está realmente pensando, embora
ele não pense, pois não existe a cessação do pensamento do pensador,
que é imperecível. Não há, no entanto, um segundo, nada separado dele
que ele possa pensar. (Brhadaranyaka Upenised IV.3.28; Radhakrishnan,
2009, p. 265)
Há uma cessação de toda dualidade, por isso é impossível tanto ter
sensações como até mesmo ter pensamentos.
Realmente, quando existe um outro por assim dizer, então pode-se ver
o outro, pode-se cheirar o outro, pode-se sentir o sabor do outro, podese falar ao outro, pode-se ouvir o outro, pode-se pensar sobre o outro,
pode-se tocar o outro, pode-se conhecer o outro. Mas [no estado de sono
sem sonhos] ele se torna como a água, uno, o vidente sem dualidade.
[ ... ] Este é o objetivo mais elevado; este é o tesouro mais elevado, este
é o mundo mais elevado, esta é a felicidade (ananda) mais elevada. As
outras criaturas vivem de uma partícula desta felicidade. (Brhadaranyaka
Upenised IV.3.31-32; Radhakrishnan, 2009, pp. 266-267)
96
Klaus K. Klostermaier considera que o estado do sono profundo e
um estado de
sem sonhos isusupti) "é um 'estado de bem-aventurança',
unificação no qual o espírito não está mais espalhado por uma profusão de
coisas objetivas e subjetivas, mas não existe consciência dessa unificação e
bem-aventurança" (Klostermaier, 1994, p. 199). Segundo John Woodroffe,
durante o sono sem sonhos a pessoa não está consciente de nada, mas ao
despertar preserva apenas a noção: "Eu dormi feliz; eu não estava consciente
de nada" (Woodroffe, 1950, p. 80).
Estes e outros autores ignoram um aspecto essencial da análise dos
estados de consciência das Upenised; a possibilidade de estar consciente
durante o estado de sono sem sonhos.
Alguns tratados técnicos de Yoga, como o Sive-Sútre e seus
comentários, indicam a possibilidade de estar consciente de estar sonhando
Uãgrat-svapna),assim
como estar consciente de estar em um sonho profundo
(jêqrst-susupti)
:
Este é o estado que vivenciamos quando perdemos a consciência tanto de
nosso meio físico externo quanto de nosso meio interno mental. Por um
momento, ficamos em um vazio completo, totalmente ausentes de nossa
situação presente. O yogin pode permanecer neste estado de absorção
por longos períodos de tempo, desfrutando a beatitude sutil da unidade, e
por isso é denominado "bem desperto" (prabhudda). (Dyczkowski, '1992,
p.33)
Ou seja: os aspectos positivos que foram descritos a respeito do
terceiro estado (sono sem sonhos) não são meras abstrações e sim descrições
de vivências que podem ser obtidas por quem dispõe do treinamento adequado
para entrar o estado do sono profundo sem perder o fluxo de sua consciência.
97
\
De acordo com as escrituras de Yoga citadas por Mark Dyczkowski, o yogin
deve manter a consciência de sua própria natureza (ou seja, do seu Eu como
observador ou testemunha) nos três estados (vigília, sonho e sono sem
sonho), prestando atenção ao momento de transição .de um estado para o
seguinte, à cessação de um estado de consciência e o início do seguinte
(Dyczkowski, 1992, pp. 131-132).
Somente levando em conta essa informação, torna-se possível
compreender aquilo que as Upani$ad descrevem a respeito do 50n,O sem
senhas. Esta técnica de Yoga, que perrnlte atravessar as mudanças de estado
sem quebra da consciência, é o que torna possível ao praticante ter vivência
a respeito do estado de sono sem sonhos, que não é uma mera ausência de
consciência, ou vazio e sim uma vivência extremamente elevada de õrebmenÃtman.
Sob o ponto de vista técnico, as vivências que podem ser obtidas
nesse estado de sono profundo consciente são um tipo de samãdhi. Elas
podem também ser atingidas de outras formas, através das práticas internas
de Yoga (Martins, 2012, pp. 94-96).
É impressionante
que, já no século XIX, Paul Deussen
conseguido compreender o significado deste quarto estado:
Mais tarde, com o surgimento do sistema Yoga, ganhou reconhecimento
um estado anímico do yoga que foi exaltado acima do sono profundo, pois
esta união com Brahman e a beatitude suprema associada com ela, que se
manifesta no sono profundo, à parte da consciência individual continuada
que mantém sua memória mesmo depois do despertar, é vivenciada no
yoga juntamente com a manutenção completa da consciência individual
desperta. [ ... ] Esta supressão da consciência dos objetos e união com
o eterno sujeito de conhecimento é trazida pelo Yoga e coincide com o
despertar absoluto, sendo designada como o "quarto" estado do ãtman, ao
lado do estado desperto, do sonho e do sono profundo. (Deussen, 1966,
pp. 309-310)
A interpretação do quarto estado não é evidente, e escapou até
mesmo a diversos comentadores indianos, como Swami Nikhilanãnda, que
afirmou:
Apenas turiya é a realidade que subjaz a todas as experiências, a realidade
que subjaz ao universo. É o universo em sua verdadeira essência. Assim
como a tela que não se move e não está associada a nada dá conexão e
continuidade às imagens descontínuas em um cinema, assim também o
turiya sem atributos, imutável e semelhante a uma testemunha dá conexão
e continuidade às experiências disjuntas do ego, naquilo que chamamos
de nossa vida fenomênina. A vida não é possível sem o substrato de turiye,
que é a realidade que permeia o universo. (Nikhilahãnda, 1947, p. 84)
o 'quart:e.estado
Ag,er.a, torna-se
possível esclarecer .o significado do quarto estado,
csturtn«, 'ou turtve.
Embora a vivência consciente do yogin no estado de sono sem sonhos
seja excepcionalmente importante, elaé apenas um estado passageiro, como
ocorre também com .os diversos tipos de semõdni: O quarto estado, por outro
lado, é a obtenção de uma situação contínua de vivência de Brahman-Ãtman,
que é rnantlda durante a sucessão dos três estados (desperto, sonho, sono
sem sonhos). A .consciência tndlvldual {e sua memória) é marittda de forma
contínua; e nos três estados a pessoa consegue voltar sua atenção para- o
seu Eu interno (o observador, a consciência, a testemunha), não se distraindo
com as vivências externas e externas que estão presentes durante o estado
desperto- e 'os sonhos.
Essa concepção é expressa na Kaiva/ya Upemsed:
Note-se que Swami Nikhilanãnda não percebeu qual é a vivência
associada a turíya, dando-lhe uma interpretação puramente cosmológica e
metafísica, sem conteúdo psicológico. O mesmo equívoco pode ser encontrado
na obra de Swami Adiswarananda, que também utiliza a comparação com a
tela de cinema (Adiswarananda, 2004, p. 18) e afirma:
De acordo com o Vedãnta, o Eu de um indivíduo é distinto de todos os
três estados de existência: vigília, sonho, sono sem sonho. Este Eu reside
internamente e é aquele que experimenta os três estados, e no entanto
permanece sem ser afetado por eles. O Eu foi descrito como turtye, ou
o quarto, o substrato imutável de todos os três estados relativos de
existência. Turiya é "ser", enquanto os três estados indicam diversos níveis
de "tornar-se". [ ... ] O conceito de um Deus pessoal é a mais elevada
leitura possível de turiya pela mente humana. (Adiswarananda, 2004, p.
18)
Nos três estados de consciência, tudo o que aparece como objeto de
desfrute, ou como o apreciador, ou como satisfação - Eu sou diferente
deles, a testemunha (sãk$in), a pura consciência, à eterno Siva" (Kaiva/ya
Upani~d 18; Radhakrishnan, 2009, p.930).
O yogin se torna "completamente
bem desperto" (suprebuddher
quando vivencia o quarto estado também enquanto desperto, e consegue
continuar a perceber seu Eu e funcionar no meio da diversidade, enquanto
mantém uma consciência de sua verdadeira natureza consciente (Dyczkowski,
1992,p. 33). Embora esteja passando do despertar para o sonho e do sonho
para o sono profundo, nesse quarto estado (turíya) ele mantém sua atenção
fixa na 'beatitude, na luz brilhante do conhecimento puro. Mantendo-se no
centro de tudo,essa
consciência permeia os três estados. A consciência
brilha como um relâmpago, livre de todo obscurecimento, ao longo da vida
diária, quando o yogin consegue perceber o quarto estado como consciência
e beatitude contínua, que é o próprio Siva, plenoe perfeito, dando vida aos
três estados (Dyczkowski, 1992,.p. 158).
Ramana Maharshi, grande mestre espiritual indiano do século XX,
apresentou esclarecimentos bastante lúcidos a respeito do quarto estado:
Turiya significa aquilo que é o quarto. Aqueles que vivenciam Uiva) os três
estados - desperto, de sonhos e de sono profundo - e que são conhecidos
como visve, taijasa e prajnã, que vagueiam sucessivamente nesses três
estados, não são o Eu. É com o objetivo de tornar isso claro - ou seja,
que o Eu é aquilo que é diferente deles e que é a testemunha desses
estados - que ele é chamado de quarto (turiya). Quando isso é conhecido,
os três vivenciadores desaparecem, e a própria ideia de que o Eu é uma
testemunha, que é a quarta, também desaparece. (Maharshi, 2004, p. 36)
sonhos].
98
havia
Existem apenas três estados, o desperto, o sonho e o sono [sem
TurTya não é um quarto; é aquilo que subjaz a esses três. Mas
99
\
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NIKHILANÃNDA, Swami. The Mãr)çükya Upanisad with Gaudapãda's Kãrikã
100
101
as pessoas realmente não o compreendem. Portanto, diz-se que este é o
quarto estado e a única Realidade. De fato, ele não é algo separado de nada,
pois forma o substrato de todos os acontecimentos; é a única Verdade; é
o seu próprio Ser. Os três estados aparecem como fenômenos passageiros
nele e se dissolvem nele, que permanece único. Portanto, eles são irreais.
[ ... ] 'Quando a única Realidade sempre presente, o Eu, é encontrado, todas
as outras coisas irreais desaparecerão, deixando atrás o conhecimento de
que não são nada senão o Eu. Turiye é apenas um outro nome para o Eu.
Conscientes dos estados desperto, de sonhos e de sono, permanecemos
inconscientes de nosso próprio Eu. Apesar disso, o Eu está aqui e agora, é a
única Realidade. Não há nada mais. (Venkataramaiah, 2006, pp. 331-332)
Estes esclarecimentos nos permitem compreender a comparação
que é feita na MaIJ(jiJkya Upenised, entre os três estados e os fonemas
constituintes do Om, e com o quarto estado. No Om, os fonemas A, V, M
se sucedem um ao outro, assim como os três estados de consciência se
sucedem. O quarto estado não é algo que venha depois dos três, mas sim
algo que passa a permear todos os três - uma consciência contínua do Eu - e
é comparável, portanto, ao próprio som completo do Om, a vibração indivisa
que integra em uma unidade os três fonemas constituintes.
Comentários finais
Vimos alguns exemplos de textos indianos tradicionais, do Veda até
as Upenised, que apresentam paradoxos ou absurdos lógicos. Dedicamos
uma atenção especial à MaIJ(jiJkya Upenissd, uma importante obra que
analisa os estados de consciência e que introduz o "quarto estado" que não
é, consciente do que está dentro, não é consciente do que está fora, não é
csnscíente de ambos ao mesmo tempo, não é consciente do vazio, não é
eonscíente, não é não-consciente. Tais paradoxos não são uma evidência
da falta de lógica dos pensadores indianos e sim uma indicação de que, em
certos pontos, eles querem indicar algo indizível, que não pode ser expresso
claramente por palavras (evvepedeéve) e que, portanto, é impensável ou
inconcebível (acíntya). Esses aparentes absurdos apontam para algo que só
pode ser compreendido de outra forma (não conceitual) e que exige uma
experiência ou vivência pessoal (vijnana) não racional. Na tradição indiana,
a teoria filosófica não pode ser separada da prática (Yoga), que é o processo
pelo qual se pode atingir aquilo que nãopode ser reduzido ao pensamento.
Agradecimento
O autor agradece ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico (CNPq), cujo apoio foi fundamental para o desenvolvimento da
presente pesquisa.
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O. CORPO É UM TEMPLO:
HISTÓRIA DO CORPO NA TRADIÇÃO DO HATHA VOGA
Maria Lucia Abaurre Gnerre
Introdução
. O presente trabalho, resultante de nossa pesquisa de Pós-Doutorado
desenvolvida junto ao PPCIR/UFJF,versa sobre a história do Voga na India e
suas concepções de corpo, através da análise de um de seus textos clássicos,
produzido num período tardio de sua trajetória milenar: O Gherenoe Semhitê,
um compêndio de posturas e práticas provavelmente datado do século XVII.
A afirmação de que o texto é representante de um momento
relativamente tardio na história desta tradição se deve ao fato de que a história
do Voga remete aos primórdios da civilização indiana. Para o historiador das
religiões Mircea Eliade, a própria história do Voga está diretamente associada
à própria história da India, em virtude de seu ideal de libertação. Nas palavras
deste autor, o Voga pode ser definido como:
Um conjunto de técnicas que permitem ao homem realizar o si mesmo,
fundir a sua consciência egóica, individual, com a mente universal. Desde
sua origem, o problema central da filosofia é a busca da verdade, mas
não a verdade para enaltecer o ego do filósofo, mas sim a verdade ~omo
meio para atingir a libertação da ilusão. O fim supremo do sábio na India
é a conquista da liberdade: "libertar-se equivale a impor-se outro plano de
existência, apropriar-se de outro modo de ser, transcendendo a condição
humana" (ELIADE, 2004, p. 20).
Assim, a este conjunto de técnicas ou disciplinas que buscam a
libertação da própria condição humana egóica e individual, pode-se chamar
de Voga. Trata-se de um termo que envolve diversas técnicas e práticas
em diferentes momentos históricos com este
espirituais que se desenvolvem
mesmo fim CGNERRE,2011).
Embora este objetivo do Voga se mantenha o mesmo em diversos
momentos de sua história, podemos identificar algumas variações importantes
na maneira como se busca este ideal de libertação. Justamente em virtude
destas diferentes características que a prática foi assumindo em diferentes
momentos históricos, os estudiosos do Voga no ocidente estabeleceram uma
periodização para a história do Yoqa?'. Segundo esta periodização, o texto
do Gheranda Samhita faz parte de um período denominado pós-clássico.
91 Periodização estabeleci da essencialmente por autores ocidentais a partir das primeiras décadas
do século xx, e que está presente nas obras de ELIADE (2004), FEUERSTEN (2005) e outros
importantes autores.
102
103
João Marcos Leitão Santos
ORGANIZADOR
Comissão Científica
Prof. Dr. José Oscar Beozzo - CESEP
Prof. Dr. Edson H. Silva - UFPE
Prof. Dr. Luciano Barbosa [ustino - UEPB
Prof. Dr. Carlos Alberto Cunha Miranda - UFPE
Prof. Dr. Marcelo Ayres Camurça Lima - UFJF
Prof- .. Dr- Hulda Helena CoracÚlfa Stádler - UFRPE
Prof. Dr. Paulo Donizéti Siepierski - UFRPE
Prof. Dr. Lauri Emílio Wirth- UMESP
Prof. Dr. Sérgio Ricardo da Mata - UFOP
Prof. Dr. Silas Guerriero PUC/SP
Prof. Dr. Vasni deAlmeida UFT
Prof. a Dr. a Elizete da Silva UEFS
Prof» Dr," Leila Marrach Basto de Albuquerque UNESP
Prof.' Dr.ÉriCo Arnaldo Huff Iúnior UFJF
Prof= Dr;- Ester Fraga Vilas Boas Carvalho do Nascimento - UNIT
Prof Dr. Antonio Carlos Magalhães Melo - UEPB
Religião,
a Herança das
Crenças e as
Diversidades
de Crer
EDITORA
DA UNIVERSIDADE
DI
\
CAMPINA
GRANDE
FEDERAL
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE HISTÓRIA DAS RELIGIÕES
Presidente: Wellington Teodoro da Silva (PUC Minas)
Secretário Geral: Vasni de Almeida (UFT)
Secretário de Divulgação: Daniel Rocha (UFMG)
Tesoureiro: Ítalo Domingos Santirocchi (UFMA)
Apresentação
Welington Teodoro da Silva
_____________________________
07
UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE
FENÔMENOS RELIGIOSOS
José Edilson Amorim - Reitor
Vicemário Simões - Vice Reitor
Ricardo Barosi Lemos- Pró-Reitor de Ensino
Diretor do Centro de Humanidades - Luciênio Teixeira
Idade Moderna: genealogia da História
das Religiões entre Civitas e Religio
_________________________________________
Adone Agnolin
11
O imaginário e as convergências profundas
Carlos André Cavalcanti
27
Irreligião? Ou mutações religiosas
conduzidas pela ciência?
EduardoR. Cruz
41
A Teologia e as novas linguagens do falar religioso
Manoel Bernardino de Santana Filho
55
Organizador: Dr. João Marcos Leitão Santos
COMISSÃO EDITORIAL
Prof. Dra. Juciene Ricart Apolinário UFCG
Prof. Dr. João Marcos Leitão Santos UFCG
Prof. Dr. Edson H. Silva - UFPE
Prof. Dr. Lyndon Araujo Santos - UFMA
Prof. Dr. Lauri Emílio Wirth - UMESP
Praf. Dr. Sérgio Ricardo da Mata - UFOP
Prof. Dr. Silas Guerriero - PUC/SP
Prof. Dr. Vasni de Almeida -UFT
Prof. a Dra. Elizete da Silva - UEFS
Prof. Dr. Arnaldo Huff Júnior - UFJF
O que é o ser humano? Elementos de
uma antropologia religiosa a partir do Candomblé
__________________________
Volney Jose Bekenbrock
O indizível no pensamento indiano:
a sabedoria que ultrapassa os conceitos
Roberto de Andrade Martins
Diagramação e Edição textual
Alisson Pereira Silva
FICHA CATALOGRÁFICA
~
69
FILOSOFIA E CULTURA ORIENTAL
Arte
Lays Anorina Barbosa de Carvalho
R382
ÍNDICE
ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA UFCG
Religião a herança das crenças e as diversidades de crer / João Marcos
Leitão Santos Organizador. - Campina Grande: EDUFCG, 2013.
238 p. : il.
85
O corpo é um Templo:
história do corpo na tradição do Hatha Voga
Maria Lucia Abaurre Gnerre
·
103
A estrutura do pensamento oriental
e sua relação com a filosofia ocidental
Deyve Redyson
117
ISBN 978-85-8001-112-8
1. Religião. 2. Crença - Herança. 3. Diversidade Religiosa 4. Herança
Religiosa. I. Título. 11.Santos, João Marcos Leitão.
CDU2-1
EXPRESSÕESCATÓLICAS
Intolerância e religiosidade na América Portuguesa:
a resistência religiosa pela documentação da Inquisição
Angelo Adriano Faria de Assis
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